A cultura da pessoa – com a visão do homem como pessoa – foi aperfeiçoada e alcançou elevado nível de civilização, com o cristianismo, que exerceu na história “maior influência na modelagem do destino humano que qualquer outra filosofia institucional”.2. Muito mais que uma filosofia, o cristianismo é a presença de uma força viva na história, ainda impactante.
Foi com Jesus Cristo que passamos a compreender o que é ser a imagem e semelhança do Criador, pois como verbo encarnado, Deus veio até nós apresentar e testemunhar a humanidade perfeita, com a perspectiva da eternidade. Humanidade esta imprescindível para a nossa realização e felicidade, cuja condição começa a ser construída nesta vida, mas só encontrará a plenitude na vida eterna. “A pessoa portanto se constrói a partir da humanidade, e se destrói se não tiver desenvolvida adequadamente (e amadurecida) esta mesma humanidade, pois por seus atos o homem se aperfeiçoa como pessoa”3 Daí que toda expressão cultural que reconhece e promove a dignidade do ser humano como pessoa, tem alcance universal e perene, tendo em vista ainda que “o ser humano não se esgota na cultura e a natureza dele é a medida desta”4
"O cristianismo consiste na visão do homem como pessoa. (...) O cristão se vê a si mesmo como ALGUÉM inconfundível, não "algo", um "quem" distinto de todo "quê", com nome próprio, criado e amado por Deus, não só e isolado, mas em convivência com os que, por serem filhos do mesmo Pai, são irmãos. Sente-se livre e, portanto, responsável, capaz de escolha e decisão com uma realidade recebida, da qual não é autor, porém própria. Sabe-se capaz de arrependimento, de voltar-se sobre a realidade, aceitá-la ou repudiá-la e corrigi-la. E essa realidade é projetiva, consiste em antecipação do futuro, do que vai fazer, de quem pretende ser, e é amorosa, definida pela afeição por algumas pessoas e o dever de que se estenda às demais. E aspira à sobrevivência, a continuar vivendo depois da morte inevitável, não isolada e sim com os demais - reza sua crença na 'comunhão dos santos'. Vive por sua condição amorosa a possibilidade de interpenetração de outras pessoas, de ser habitado por algumas.
Tudo isto fez parte durante dois milênios da PERSPECTIVA CRISTÃ, foi transmitido, de maneira não teórica, escassamente conceitual, a milhões e milhões de homens e mulheres - desde crianças geralmente -, foi a interpretação básica de suas vidas e, não menos, da realidade total. O modo de sua instalação no mundo e como a vida humana é interpretação de si mesma, este esquema tem sido durante séculos um elemento dessa realidade mesma em grande parte do mundo.5
O cristianismo, portanto, deu vigência à compreensão do homem como pessoa “esse tipo de homem, hoje ameaçado de desaparecer”6, daí a sua universalidade e perenidade, cujo conteúdo alcança o âmago da verdade sobre o que é o homem, indagada desde os mais antigos filósofos, e confirmada pelo Magistério da Igreja. “O cristianismo não é nunca um conjunto de posições a manter, um corpo de doutrina, mas uma maneira de ser e de viver, um compromisso total”7. Não apenas conhecer-se a si mesmo (Sócrates), mas também tornar-se o que é como pessoa (Píndaro), é o desafio da construção do ser humano na dimensão da pessoalidade. “O ser humano é, potencialmente, pessoa que se constrói na medida em que agir eticamente. Esta construção pressupõe uma estrutura ontológica que se atualiza na ação eticamente adequada”8
Karol Wojtila fala de um “humanismo ascendente”9, que traduz o mistério da maturação do ser humano como pessoa (quando capaz da “maturidade no dom de si”). O mistério que maravilha a todos os povos, em todas as épocas, é o homem (ser pessoa) ser capaz de “maturação”, isto é, estar destinado a se realizar ou se irrealizar, cuja felicidade ou infelicidade enquanto ser, depende de seus atos volitivos, especialmente como expressão do mandamento universal de amor a Deus e ao próximo como a s i mesmo. A seriedade do existir está em que a partir da vida dada pelo Criador, cada pessoa é o que decide ser. Trata-se de uma decisão realmente relevantíssima.
“A decisão é mais profunda. Diz respeito a toda a estrutura da vida, repercute no meu âmago. Se eu vivo a vida sem Deus ou contra Ele, o que seria possível, então será completamente diferente de fundá-la em Deus. É uma decisão relacionada com toda a orientação da minha própria existência: como vejo o mundo, como eu próprio quero ser e como hei de ser. Não é qualquer uma das muitas decisões exteriores que existem no mercado das possibilidades que se me oferecem: pelo contrário, está em questão toda a concepção da vida.”10
Nosso desafio hoje é justamente destacar e fazer revigorar a cultura da pessoa humana, já existente, e buscar uma nova metodologia (um melhor “como fazer”) para que haja um renovado convencimento do valor e do sentido desta cultura, em contraponto à antítese que emerge fortemente na sociedade cientificista e tecnicista que aí está, cujas premissas reducionistas e materialistas, vem obscurecendo e até comprometendo de vez a beleza e o valor vivificante da cultura (que cultiva) do humanismo ascendente.
(...) Há um par de séculos a vigência da perspectiva cristã experimentou uma regressão nos povos que a possuíam e a haviam conservado desde seu início ou pelo menos há vários séculos. Pode-se falar com fundamento de um processo de DESCRISTIANIZAÇÃO em várias etapas, de distinto pontos de vista, realizado por diversas 'equipes' que se vão rendendo, com estranha continuidade, desde o século XVIII. (...) Esta descristianização trata-se de algo mais amplo e de maiores conseqüências: a eliminação o da dimensão religiosa do homem. Que esta empresa tenha se concentrado no cristianismo é mera conseqüência de que era a religião com a qual se tinha que haver, a que tinha realidade, vigência, vigor, a forma concreta em que acontecia a religiosidade (...) À medida que o tempo foi passando, até chegar ao presente, viu-se com clareza que o que se tratou de eliminar é toda visão religiosa.
(...) O que é decisivo, o que se torna esclarecedor, é que esse processo se realiza paralela ou convergente mente com o de despersonalização. Na realidade, são duas faces da mesma atitude, do mesmo propósito. Há muito tempo se vem tentando que os homens percam de vista sua condição única de pessoas, que se vejam como organismos, reduzidos às outras formas de realidade que existem no mundo; em última análise, redutíveis ao inorgânico, mera realidade sem nenhuma irrealidade inseparável e intrínseca em forma de projeto, de futuro. É evidente, sem liberdade, submetidos às leis naturais - físicas, biológicas, sociais, psíquicas, econômicas - suscetíveis a toda manipulação provinda de todas essas instâncias. (...) O paradoxal é o fato de que este duplo processo de despersonalização e eliminação da religiosidade e de sua forma superior, a PERSPECTIVA CRISTÃ, coincida com o avanço maior de toda a história intelectual na descoberta e compreensão dessa forma estranha e única de realidade que é a PESSOA HUMANA, justamente O QUE SOMOS”11
Primeiramente, para uma reflexão mais acurada, comecemos por aquilo que caracteriza, afinal, o ser humano como pessoa, segundo a concepção wojtiliana:
“Karol Wojtila (...) compreende o ser humano, fundamentalmente, como pessoa, cujos elementos constituintes fundamentais são a consciência, em sua dupla função de reflexão e subjetivação, a vontade livre, a capacidade de autotranscendência e de integração dos diversos dinamismos presentes no homem e a capacidade de participação, quando o ser humano exercita o ser pessoa junto com os outros. A capacidade de autotranscender-se é fundamentalmente a possibilidade de amadurecimento de atualização do ser pessoal”12
O ser humano é pessoa é capaz de ato volitivo, portanto, causal, nesse sentido, assemelha-se ao Criador. “O bem consiste em pertencer a Deus, obedecer-Lhe, caminhar humildemente com Ele, praticando a justiça e amando a piedade (cf. Miq 6, 8).”13 A vida é dada, mas exige da realidade dada, um trabalho de ascese (que requer, muitas vezes, sacrifício e renúncia, porque é preciso discernir, fazer escolhas); uma obra de lapidação pessoal, de aprimoramento das potencialidades, completado e plenificado pela graça de Deus, quando a pessoa dirige sua liberdade p ara a verdade e o amor. “Esta obediência nem sempre é fácil. (...) Na seqüência daquele misterioso pecado de origem, cometido por instigação de Satanás, que é 'mentiroso e pai da mentira' (Jo 8, 44), o homem é continuamente tentado a desviar o seu olhar do Deus vivo e verdadeiro para o dirigir aos ídolos (cf. 1 Ts 1, 9), trocando 'a verdade de Deus pela mentira' (Rm 1, 25); então também a sua capacidade para conhecer a verdade fica ofuscada, e enfraquecida a sua vontade para se submeter a ela. E assim, abandonando-se ao relativismo e ao ceticismo (cf. Jo 18, 38), ele vai à procura de uma ilusória liberdade fora da própria verdade.”14
O perigo da existência humana (daí um drama intenso) é que a pessoa pode ser salva ou perder-se a partir das escolhas feitas.
A pessoa é feita de corporeidade e espiritualidade, cuja realização há de ser na dimensão integral. “Corpo e alma são inseparáveis: na pessoa, no agente voluntário e no ato deliberativo, eles salvam-se ou perdem-se juntos”15. Há impasses, tensões agudas, angústias inumeráveis, mas a liberdade pode equivocar-se afastando-se da verdade, principalmente quando relativiza e banaliza o valor e o sentido da vida humana. Outro dado relevante: a vida é dada para sempre. Somos responsáveis pelas conseqüências dos nossos atos, daí a gravidade de não se levar a sério a real idade dada e não nos empenharmos para valer para acertar o passo na difícil caminhada da realização como pessoa humana. Jesus Cristo é Senhor e Salvador porque é Ele quem nos garante a salvação, quando reconhecemos a nossa fragilidade e recorremos a Ele, como o bom ladrão na cruz, para obter a graça salvífica.
“Não há valores humanos, naturais, que se possam separar da ordem sobrenatural. Tudo está submetido às exigências da salvação”16. A pessoa humana não se salva sozinha, precisa do Criador para completar o que as suas forças não alcançam por si só, daí que é preciso ascese e esforço pelas virtudes, mas a salvação do ser humano como pessoa (a sua realização integral e plena) não é obtida pelos méritos, mas pela graça de Deus, pois, “grande e único meio de salvação é a confiança em Deus”.17. A passagem do centurião que recorre a Jesus para lhe salvar um criado é significativa. Ele disse a Jesus que não precisava ir até sua casa, bastasse uma palavra sua e o seu criado estaria salvo. Ao que Jesus lhe disse comovido: “A sua fé o salvou!”.
O individualismo exacerbado dos nossos dias sinaliza “o perigo de se eliminar a situação de harmonia ôntica e ética do homem-pessoa”18. Por isso é preciso que saibamos ser capazes de tonificar o que a cultura da pessoa já foi capaz de produzir de excelso na história humana. É necessária uma nova primavera desta cultura realmente vigorosa, que está apenas debilitada, mesmo abalada quase em suas estruturas. Mas a água tonificante deve ir direto à raiz, para possamos vê-la novamente revigorante.
Para isso, é necessário primeiramente ter consciência clara que a dimensão da crise cultural atual, crise da vida humana como um todo, é uma crise profundamente radical, porque atinge os seus fundamentos. “Cultura, aliás, não é apenas a soma dos conhecimentos, mas também o resultado de uma formação e a estrutura de uma mentalidade”19. Como dissemos, no início desta reflexão, o cristianismo soube imprimir a validade universal de uma cultura de promoção da pessoa humana. Daí que “a ruptura entre Evangelho e cultura é, sem dúvida alguma, o drama do nosso tempo”20.
A crise atual “é global, afetando a vida humana medularmente e em todos os setores. (...) O que começou “como 'crise de poucos', (séculos XIV-XVII), ampliou-se como 'crise dos muitos' (século XVIII), e agora fez-se a 'crise de todos', conforme ensina Ferrater Mora”21. Crise ubiqüa, que se tornou “crise dos fundamentos da vida humana.”22 Crise que nos desinstalou, criou fraturas nos relacionamentos, que deixaram de ser subsistentes, para se tornar vulneráveis, escapistas, imediatistas e descartáveis. Crise do sentido da vida humana, do valor da pessoa humana, das razões para viver. “Privados de pontos de referência autênticos (...) muitos arrastam a sua vida quase até a borda do precipício, sem saber o que os espera”23.
Nesse sentido, o cristianismo permanece a perspectiva redentora, na dimensão soteriológica, porque oferece os fundamentos de sustentação do autêntico sentido humano de vida. “A revelação cristã é a verdadeira estrela de orientação para o homem, que avança por entre os condicionalismos da mentalidade imanentista e os reducionismos duma lógica tecnocrática; é a última possibilidade oferecida por Deus, para reencontrar em plenitude aquele projeto primordial de amor que teve início com a criação”24 Como então reafirmar o valor da pessoa, num contexto histórico de indiferença e até negação desse mesmo valor, comprometendo na raiz, a estrutura ôntica da pessoa humana?
“O mandamento do amor, como foi dito, é uma norma personalista. Partimos do ser da pessoa, para em seguida reconhecer o seu valor particular. O mundo dos seres é um mundo de objetos onde distinguimos pessoas e coisas. A pessoa distingue-se da coisa pela própria estrutura e perfeição. A estrutura da pessoa pertence à 'interioridade', na qual descobrimos os elementos da vida espiritual, o que nos obriga a reconhecer a natureza espiritual da alma humana. Por isso a pessoa possui sua própria perfeição espiritual. Esta perfeição decide o seu valor. Porque ela possui tal perfeição espiritual e até certos pontos é um espírito (encarnado) e não apenas 'corpo', mesmo que magnificamente animado, de nenhuma maneira se pode tratar a pessoa como uma coisa (ou até como um animal). Existe uma enorme distância, um abismo intransponível entre o psiquismo animal e a espiritualidade do homem”25
Enquanto cristãos, sabemos que “Deus nos releva seu projeto de vida”26, daí a vida humana ser projetiva, dentro da dimensão da pessoalidade. “Homens é o que sois, e não máquinas!”, advertia Chaplin, no clássico discurso final de O Grande Ditador. A pessoa é chamada a assumir a humanidade que lhe pertence naturalmente, pois “quanto mais o homem age segundo sua natureza e se aproxima da sua perfeição, tanto mais se aproxima da idéia criadora de Deus”27; daquele ideal do homem que Deus tinha em mente, quando o criou e dotou-o de liberdade para alcançá-lo”28
É preciso, portanto, reafirmar a cultura da pessoa humana proposta pelo cristianismo (de êxito histórico, ao contrário dos sistemas opressores da pessoa humana, fracassados na história). Para isso requer inclusive uma convergência entre fé e política, para especialmente no campo legislativo fazer vigorar legislações promotoras da cultura da pessoa, pois senão continuaremos a ser vítimas do permissivismo moral que atinge duramente a estrutura da pessoa, tornando-nos mais vulneráveis às ameaças existentes, sem a proteção indispensável para o cuidado com a vida humana, em todos os aspectos. É certo que “a lei humana não faz tudo”29, mas com permissivismo vigente tolera-se males danosíssimos à dignidade da pessoa humana, fazendo com isso a lei voltar-se contra o ser humano, ao invés de protegê-lo e promovê-lo como pessoa.
Por causa da concepção que a Igreja tem de pessoa humana, “é que ela se opõe a todas as filosofias totalitárias que reduzem a pessoa a uma parte de um todo, seja ele a raça ou o Estado. Por isso mesmo , ela se opõe a todas as formas de angelismo que não levem em conta as condições e as exigências concretas do homem como espírito encarnado na matéria, e assim confinado ao espaço e ao tempo, inserido dentro de um processo histórico. Por isso opõe-se a todas as formas de materialismo que desconhecem no homem as exigências do espírito e só vêem nele animal mais refinado que bastaria nutrir e vestir para fazer feliz”.30
A Igreja não tem modelos a propor, mas parte de sua doutrina social para indicar os princípios e valores pelos quais devemos nos pautar para reafirmar – a partir dos desafios dos tempos convulsivos da atualidade – a cultura da pessoa humana, para edificar a civilização capaz de afirmar o amor e a solidariedade, para o bem de todos.