É correto que o município corte a
grama do quintal do cidadão à sua revelia, como acontece no Canadá?
Por Klauber Cristofen Pires
Em certa ocasião, estava eu a conversar
com alguns amigos e sem lembrar-me agora a origem do debate - porque
toda boa conversa potencializada pelo catalisador etílico começa de
um jeito, usualmente “política”, e termina de outro, usualmente
“mulheres” – ocorreu-me comentar sobre o que eu considerei um
absurdo, isto é, ter tido conhecimento por um imigrante brasileiro
no Canadá que as prefeituras de lá “avocam” para si próprias o
dever do proprietário do imóvel de aparar a grama do seu quintal,
caso ele não o faça, sendo que depois enviam-lhe a conta do
serviço, acompanhada de uma significativa multa.
Como resposta de um deles, que decerto
ungiu-se de autoridade por ter vivido durante alguns anos da Irlanda,
ouvi o apoio à brutal discricionariedade estatal, sob a alegação
de que o indivíduo que deixa a grama de seu quintal crescer provoca
a diminuição do valor das propriedades vizinhas...
Aí, caros leitores, encontra-se uma
clássica falácia coletivista travestida de proteção à
propriedade privada.
Para solucionar o equívoco do nosso
amigo, basta considerarmos uma situação inversa como fórmula de
reductio ad absurdum: imaginemos que uma modificação no
estado da minha propriedade não produza um esperável decréscimo no
valor das propriedades vizinhas, como a grama por cortar enseja, mas
sim um acréscimo, digamos, por abrigar valiosas esculturas. Teria eu
então o direito de cobrar dos meus vizinhos algum tipo de
compensação, digo, por exemplo, royalties ou como fazem os
governos, “contribuições de melhorias”?
Certo há que existem condomínios
privados que possuem regulamentos sobre a construção e a manutenção
da aparência das casas e quintais, mas aí o que temos é um sistema
absolutamente legítimo, porque contratual: os donos se comprometem
previamente a adotar uma determinada estética em comum acordo.
Embora estejamos tratando aqui de bens
residenciais e não de meios de produção, a mentalidade que
alimenta este tipo falho de raciocínio, fundada sobre a
reivindicação de legitimidade da preservação do valor da
propriedade, é a mesma para a qual o filósofo Hans-Hermann Hoppe
atribuiu a classificação de “socialismo do tipo conservadorista”.
O conservadorismo econômico é o pai das guildas, das regulações
estatais impostas com o objetivo de restringir ao máximo a
participação de novos concorrentes no mercado e até mesmo da
engenharia comportamental.
De sua lavrai:
“Contrariamente, o
conservadorismo considera apropriado e legítimo para uma classe de
proprietários já estabelecidos o direito de barrar qualquer mudança
social que estes venham a considerar como uma ameaça à posição
relativa que ocupam na hierarquia social de renda e riqueza, mesmo
que os vários donos-usuários individuais dos vários fatores de
produção não tenham contratado isto sob nenhum acordo de tal
natureza.”
O que a Escola Austríaca de Economia nos
ensina é que o direito natural da propriedade prevê aos donos a
prerrogativa de defender a integridade física delas contra a a
agressão por terceiros. Ora, desde que o valor é um fenômeno
puramente intersubjetivo, então não pode logicamente ser enquadrado
como uma peça integrante do conceito de propriedade. Ou seria
correto reconhecer o direito de alguém de manipular a opinião dos
outros?
Segundo o filósofo alemão, as
estratégias preferidas do socialismo conservadorista são o controle
de preços, a regulação dos processos de produção e o controle
comportamental. No caso dos bens imóveis, que é o objeto da análise
que está sendo feita aqui, todos estes ingredientes são
verificáveis: o controle de preços é o próprio objetivo da lei
municipal que possivelmente foi promulgada por força de algum lobby
dos atuais moradores; a regulação dos processos de produção
configura-se no estabelecimento do modelo padrão das residências,
fora do qual seus donos são desencorajados a tentar, e o controle
comportamental está em fazerem as pessoas crerem de per se
que o design estatal preestabelecido é o melhor possível.
Certamente que um país como o Canadá
possui um padrão de vida exemplar, mas isto por si só não se
traduz em uma justificativa. Não são poucos os cidadãos daquele
país que reclamam de carências não monetizáveis em suas vidas. O
que estas pessoas estão reclamando é que embora seus bolsos estejam
cheios, suas vidas restam vazias, porque o estado vem se intrometendo
nas áreas mais íntimas dos cidadãos. Com efeito, um estado que se
põe a cortar a grama dos seus administrados não há de enxergar
nenhum óbice em decidir adiante limpar-lhes a caixa d'água, pintar
os muros na cor que bem entender, arrumar a garagem, organizar a
lista de compras e ora bolas, até mesmo vigiar se os homens estão
urinando sentados...
No longo prazo, entretanto, a difusão de
tal comportamento há de estender-se inexoravelmente para o campo
econômico, e é aí que se poderá verificar uma queda gradual –
mesmo que no princípio apenas relativa – do nível dos padrões de
vida, uma vez que os inovadores serão permanentemente
criminalizados.
No Brasil, dificilmente alguém há de
encontrar uma lei semelhante no âmbito civil, mas na álea econômica
o conservadorismo exerce uma profunda e arraigada influência – daí
nosso relativo empobrecimento. Praticamente ninguém consegue abrir
qualquer negócio ou exercer qualquer profissão sem que antes tenha
de pedir permissão aos atuais donos.
No setor empresarial, prevalecem os
lobbyes que apoiam os aumentos de impostos, de exigências
burocráticas e de leis particularistas. A isto tenho denominado de
“dumping tributário e administrativo”, pois que se trata de
efetiva e realmente eficaz prática de dumping, uma vez que ao
contrário da prática tradicionalmente conhecida por este termo, são
os consumidores e os cidadãos os que pagam pelos custos de tal
empreitada, e não a empresa desleal, sendo que os retornos são bem
mais garantidos. Seus principais beneficiários são as grandes
empresas, visto que se valem da economia de escala para conquistar
mais lucro por quantidade, mesmo às custas de um menor lucro por
unidade. Se alguém aqui se sentir um pouco confuso, vale esclarecer
que não me refiro à economia de escala pura e simples, isto é,
aquela que envolva um aprimoramento dos métodos de produção, de
transporte e de comercialização. Refiro-me, sim, ao ambiente
artificialmente modificado que leva os concorrentes menores à
sucumbência por não possuírem poder econômico para atender às
mais variadas e constantes exigências burocráticas e tributárias.
Para empresas grandes, manter imensos departamentos contábeis e
jurídicos torna-se relativamente menos custoso, sem dizer que ainda
podem contar com os atalhos que um labiríntico sistema tributário
pode provê-las.
No setor dos serviços, quem dá as
cartas são os conselhos de classe ou ordens profissionais. No
Brasil, estas entidades adquiriram status de autarquias, e usualmente
legislam em causa própria, à revelia da Constituição e das leis,
e o pior, sem um pingo de representatividade política; adotam
posturas políticas sem autorização expressa dos seus associados;
perseguem profissionais desafetos e estendem suas asas aos que
pertencem à “panela”, como a gíria muito bem ilustra; estipulam
taxas e multas, cassam registros e fecham estabelecimentos.
Descendentes diretas das guildas, tem na OAB o exemplo mais acabado
de corporativismo, que faz do exame de proficiência seu principal
mecanismo de de seleção ideológica e limitação da concorrência
no mercado de trabalho. Atualmente, tramita no Congresso um projeto
de lei que promete estabelecer o exame de proficiência também para
os profissionais de saúde. Os mais desfavorecidos neste esquema são
os profissionais que não logram poder exercer seu ofício e os
consumidores, que acabam sempre pagando mais caro.
No serviço público, nos últimos anos
prosperou a política de criação de cargos especializados que se
encastelam em um conjunto de atribuições privativas e concursos
públicos específicos, as mais das vezes puramente ficcionais.
Dentro deste quadro, torna-se difícil aos governos racionalizar a
lotação, o tamanho e as funções dos órgãos, alocando entre os
próprios os servidores de uns e de outros conforme as necessidades
conjunturais, bem como harmonizar sua política salarial com o
mercado de trabalho privado.
Na questão trabalhista, criam-se
diariamente as mais diversas exigências, até o ponto da
impraticabilidade. Querem um exemplo? Desafio qualquer pessoa a me
apresentar uma escala contínua de turnos de serviços absolutamente
conforme a lei e que seja viável do ponto de vista econômico. A
proliferação de direitos trabalhistas desfavorece em uma ponta
principalmente os desempregados e os trabalhadores menos
especializados, uma vez que o corte de produtividade esteja abaixo do
custo de mantê-los empregados, e na ponta oposta os trabalhadores
mais preparados e especializados, vez que as negociações em bloco
roubam-lhes o diferencial mercadológico para pagar os salários dos
mais encostados.
Como tem nos ensinado Ludwig von Mises, o
que precisamos fazer para melhorar este estado de coisas é
substituir as ideias equivocadas por ideias corretas e sensatas. E
tudo começa com uma mudança de mentalidade, mesmo que nasça de
algo tão comezinho quanto a intervenção municipal de cortar a
grama à revelia do proprietário...
iHOPPE,
Hans Hermann: Uma teoria sobre o Socialismo e o Capitalismo.
Instituto Ludwig von Mises Brasil, São Paulo, 1ª ed.,2010
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