Como funcionaria um sistema bancário e monetário sob bases puramente contratuais?
Por Klauber Cristofen Pires
A crise que angustia a Europa e promete
levar os seus efeitos aos rincões mais remotos da Terra nos avisa
que o sistema sustentado sobre o tripé da moeda fiduciária de curso
forçado, dos bancos centrais e das reservas fracionárias bancárias
está esgotado. Talvez mais um último malabarismo monetário adie
seu fim por mais alguns anos – a humanidade, sempre que pode,
prefere adiar as decisões importantes e sensatas – mas isto há
somente de piorar as consequências quanto do advento do fatídico
momento.
Para quem tem pouco conhecimento sobre o
assunto, chama-se de moeda fiduciária de curso forçado ou
papel-moeda aquelas notas de papel pintado que você tem na sua
carteira, e de sistema de reservas fracionárias como sendo aquele
que permite aos bancos emprestarem mais dinheiro do que na realidade
têm em poder, por meio de artifícios escriturais. O elo de ligação
deste esquema é personificado pela figura do banco central, que
detém a prerrogativa de emitir mais notas, regulamentar o grau de
multiplicação do poder de emprestar pelos bancos comuns e
alegadamente servir como guardião e garantia da liquidez do sistema.
Ocorre, entretanto, que tal fórmula
jamais funcionou, malgrado tantas e quantas novas promessas de que
daquele dia em diante tudo seria diferente. Os brasileiros são os
espectadores mais enfadados deste batido filme, que mudava de nome só
para atrair mais uma vez a plateia, assim que já se chamou
“real/réis”, depois “cruzeiro”, “cruzeiro novo”,
“cruzado”, “cruzado novo”, “cruzeiro”, “cruzeiro real”,
e hoje, pelo menos até nova ordem, novamente “real” .
O poder de emitir mais moeda pela simples
impressão de notas de papel ou ainda por mero comando em um sistema
informatizado, somado à permissão de os bancos multiplicarem várias
vezes o seu uso sem garantias reais para os depósitos simplesmente
nunca teria resultar em um sistema monetário confiável.
Não há, a rigor, quem possa anunciar o
dia e a hora do enterro. O que o liberalismo austríaco informa,
porém, é que este momento há de ocorrer, inexoravelmente. O que
este artigo pretende oferecer à reflexão é como as coisas poderiam
acontecer sob um cenário totalmente desregulamentado, isto é,
puramente privado, de modo que assim possamos alimentar algumas
previsões de como virão a ser no dia seguinte ao do último suspiro
do sistema monetário-bancário vigente.
A proposta austríaca prevê a aplicação
inversa deste modelo, isto é, a desregulamentação completa do
sistema financeiro, com o retorno ao padrão-ouro e o fim do sistema
de reservas fracionárias e de bancos centrais. Ocorre, todavia, que
uma desregulamentação completa implica justamente em admitirmos a
faculdade destas instituições de reviverem uma moeda não
totalmente conversível, o sistema de reservas fracionárias e uma
instituição de empréstimos de última instância, ou seja, algo à
moda de um banco central. Então, qual seria a solução?
Para começarmos a avaliar este novo
cenário precisamos começar por relembrar o conceito de moeda, qual
seja, o de constituir-se em uma mercadoria relativamente rara,
portátil, e de aceitação espontânea e universal. Por aí já se
vê que o papel-moeda que vige nos dias atuais em todos os países do
mundo jamais cumpriu nenhum destes requisitos: não é uma mercadoria
que detenha valor em si mesma, sua raridade depende do humor dos
governos e sua circulação é compulsória e adstrita ao território
sob a jurisdição do estado que o emitiu. Por fim, o câmbio de uma
determinada moeda de um país para a de outro - quando não for
impossível - sempre é realizada com ágio, o que resulta em
diminuir ainda mais o seu poder de compra.
O sal já foi usado pelo antigo império
romano quando cumpria os requisitos para funcionar como meio de
troca. Hoje, porém, já não seria possível seu uso, já que a
obtenção em escala industrial é facílima. O ouro tem a seu favor
toda a história da humanidade, tendo sido testado e aprovado como a
melhor mercadoria, a mais portátil – porque bastante rara e por
isto, valiosa – e tem sido aceita em todo o orbe de bom grado por
todas as culturas. Ademais, quem tem 100g de ouro no Brasil, terá
100g na Austrália, em Madagascar e até em Sealand.
Não obstante, em um mercado totalmente
desregulamentado, ainda o ouro poderia vir a se tornar uma segunda
opção, a depender dos costumes e das disponibilidades locais. Certo
dia, um dileto amigo perguntou-me qual a moeda que deveria existir em
substituição ao papel-moeda, quando este tiver o seu fim. Creio que
consegui responder apropriadamente: absolutamente, qualquer
mercadoria que seja aceita pelo mercado, e isto pode incluir até
mesmo coisas como gado, grãos, minerais ou outras commodities.
Voltando agora ao assunto: em um sistema
totalmente desregulamentado, pelo menos em tese, nada poderia obstar
que um banco voltasse a praticar a moeda escritural, bem como
valer-se de uma instituição garantidora. Então, o que seria?
Bancos privados já imprimiram moeda. No
Brasil, provocou uma enorme confusão que levou o nome de
“encilhamento”, uma das façanhas do excelentíssimo Rui Barbosa
que não costuma ser lembrada nos livros escolares. Todavia, o
problema foi que os bancos imprimiam contos de réis, a moeda do
estado, de modo que o lastro, ou melhor, a falta de lastro, era
dissolvida por todo o sistema bancário. Coisa triste: mais de cem
anos depois, não aprendemos nada: ainda privatizamos lucros e
socializamos prezuízos...
Em um sistema bancário/monetário
totalmente livre, os bancos poderiam voltar a emitir moeda, mas esta
haveria de ser, forçosamente – porque não haveria outra opção –
a sua própria moeda. Assim, o banco do fulano poderia emitir, à
guisa de exemplo, “fulanoreais”.
Os “fulanoreais”, por sua vez,
poderiam ser conversíveis em ouro ou em qualquer mercadoria
previamente acertada por contrato (imagine garantias reais de
penhoras, como joias, veículos ou imóveis, ou como já exposto
acima, grãos, gado ou minerais).
Igualmente, a capacidade de conversão
também requisitaria de antemão o acerto contratual, podendo ir de
totalmente conversíveis até qualquer percentagem celebrada de comum
acordo.
Por fim, um banco emprestador em nível
superior poderia servir como um avalista, prestando assim
confiabilidade ao sistema.
A tal altura, haverá leitores que
indagarão se isto tudo não é exatamente o que acontece agora. Digo
que não e explico adiante:
Não que eu defenda a priori o sistema de reservas fracionárias, mas admito que ele pode
proporcionar a vantagem de oferecer alguma elasticidade ao balanço
entre depósitos e empréstimos, viabilizando desta forma operações
de investimentos sem prejuízo para os prazos, o que de outra forma,
em um sistema muito rígido, poderia acarretar custos maiores para os
empreendedores e portanto, uma pior alocação dos recursos. Se o
banco pode emprestar dinheiro hoje tendo relativa certeza que pode
vir a recebê-lo numa data futura, então não há tanto problema em
um cenário no qual não seja esperável que todos os correntistas
demandem sacar todo o dinheiro ao mesmo tempo. Entretanto, é sabido
que quanto mais se distanciar dos 100% de conversibilidade, mais este
banco se expõe a este risco, tanto quanto mais alimenta o temor e a
desconfiança sobre seus clientes.
Portanto, é certo que um sistema de
reservas fracionárias remete ao risco de calote, mas isto pode ser
calibrado pelo próprio banco conforme suas próprias expectativas
mercadológicas, que passa a responder por si, e não no meio de uma
massa amorfa. Se seu empreendimento quebrar, quebrarão apenas as
pessoas que detêm “fulanoreais” e que não conseguiram
convertê-los tempestivamente em ouro ou em bens reais.
Quanto ao emprestador de instância
superior, não falo aqui de um banco central estatal, mas de um tipo
de bancos cujos clientes seriam outros bancos e que funcionaria sob
bases contratuais. Ele mesmo passaria a receber um incentivo
verdadeiro para regular e auditar severamente os bancos sob as suas
asas, pois seu patrimônio e sua reputação estariam sob o juízo do
mercado, ou de forma mais clara, dos clientes finais. Assim, ele
passa a agir duplamente como uma sociedade classificadora e uma
seguradora, e esta função pode ser muito bem assimilada pelo
mercado.
O que se há de destacar como diferencial
no esquema aqui apresentado é a ausência da perdulária figura do
estado, a única entidade que não presta contas a ninguém e obtêm
sua liquidez por meio da tributação. Não havendo lugar para a
expansão monetária desenfreada, as alocações de recursos seriam
dirigidas para as necessidades mais urgentes e demandadas ao setor
produtivo, e a poupança seria protegida contra o efeito confisco.
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