Certos ditados populares não caducam tão cedo, e aquele que diz que o uso do cachimbo deixa a boca torta é um deles. Refiro-me ao artigo do Dr Rubem de Freitas Novaes, intitulado "Lord Keynes e a Crise" que, não obstante seu primoroso currículo pessoal (1) e tantos outros textos em que se evocam as defesas às liberdades individuais e ao livre-mercado, deixa-se conduzir pela falácia de um Keynes plenamente comprometido com a ordem capitalista, em um flagrante de contaminação por superexposição à atividade acadêmica.
Como tenho divulgado, tanto nas obras de Ludwig von Mises quanto nas de Hayek e possivelmente de outros autores liberais, o uso do termo "economista" é usado com um significado absolutamente alijado dos socialistas e outros tipos de intervencionistas estatais (que no frigir dos ovos, são todos socialistas, em qualquer grau). Para estes autores, "economistas" são os liberais. Não há, portanto, que se falar em economia em uma sociedade socialista à moda soviética, tal como o absurdo periódico caribenho que leva o nome de "El Economista de Cuba".
Em tais sociedades-estados, o que existem são determinações burocráticas de construção, produção e distribuição, motivadas por critérios políticos, estratégicos ou meramente militares. Nada há de econômico: se, por exemplo, a produção comunista de trigo excede o custo dos recursos materiais e humanos necessários ali investidos, ninguém ao certo há de saber, porém, se há uma ordem no sentido de seu plantio, ela será levada a cabo e será distribuída à população "gratuitamente" ou em troca de um preço politicamente estabelecido, assim como no Brasil são distribuídos os remédios da Farmácia Popular, em detrimento de outras escolhas mais viáveis.
Em sua exposição, assim se manifesta o autor:
"A grande “sacada” de Keynes foi perceber que o bom funcionamento do regime capitalista depende de um fator até então muito pouco lembrado nas construções teóricas: a fundamental confiança entre os agentes econômicos. Instalada uma crise generalizada de confiança num momento ruim da economia – sem que se discuta, nesta oportunidade, o que originou esta crise – a hipótese de flexibilidade de preços e salários seria insuficiente para garantir o retorno à normalidade, já que os mercados de moeda e crédito deixariam de funcionar adequadamente."
O autor pode alguma ter razão quanto ao fato do fator confiança ser pouco lembrado nas construções teóricas, se lembrar de mencionar a exceção à escola austríaca, pois nesta a confiança e a tradição constituem as colunas mestras de todo o sistema econômico de uma sociedade livre. Entretanto, no meio prático - aquele em que as idéias têm de funcionar para serem aceitas como corretas - a confiança é um dado conhecido há séculos. Vide, leitor, a obra "O Mercador de Veneza", de Shakespeare, convertida recentemente em filme, em que o judeu Shylock, representado tão brilhantemente pelo ator Al Pacino, faz a cobrança do empréstimo concedido a Antônio (Jeremy Irons) nos termos em que ambos o celebraram, sob pena da perda da confiança do mercado recair sobre todo o comércio veneziano!
Neste trecho, o autor esquiva-se de discutir o mérito que originaria uma crise, preferindo-a dar como um dado de uma equação reproduzível a qualquer tempo. Não sei por que motivo assim o articulista em comento houve por preferir, mas posso, de minha própria parte, asseverar que o que a originou e forneceu a primeira oportunidade para os devaneios keynesianos foi simplesmente o maior confisco de propriedade privada - em termos absolutos - já protagonizada pela história mundial, quando Mr Roosevelt abocanhou na marra todo o ouro financeiro em poder dos cidadãos, com o requinte de criminalizar os resistentes, e o trocou por meros pedaços de papel. Daí em diante o mundo engatou a quinta marcha para a maior corrida inflacionista da história e os governos - inclusive o norte-americano - passaram a se endividar como nunca.
Claro, todo o New Deal foi uma coleção exemplar de medidas autoritárias e economicamente depressivas, tais como as leis de salários máximos e as de preços mínimos ou fixados pelas agências reguladoras, mas só a possibilidade de imprimir dinheiro sem absolutamente nenhum lastro foi, certamente, o maior golpe contra a confiança do mercado, e que foi protagonizada com base nas idéias dos socialistas fabianos... dos quais justamente Mr Keynes fazia parte!
Adiante, segundo trecho destacado do mesmo parágrafo, o autor se propõe à justificação da intervenção estatal segundo a receita do lorde inglês:
Emissões primárias de base monetária comandariam um menor estoque de moeda, pela queda dos multiplicadores bancários, e o estoque de moeda existente comandaria uma menor demanda agregada, pela queda da velocidade de circulação monetária. Em outras palavras, bancos, indivíduos e empresas disporiam de recursos financeiros, mas não os movimentariam na velocidade desejada. Com isso, estaria configurada uma “armadilha da liquidez” (liquidity trap), modernamente chamada de “empoçamento” da moeda e do crédito, que obrigaria o Governo a agir do lado das despesas públicas para restabelecer um nível razoável de atividade econômica.
O que o autor aqui defende é a idéia de que o consumo impulsiona a produção, trazendo consigo o enriquecimento, exatamente de acordo com o ideário keynesiano. As políticas conduzidas pelo presidente Roosevelt sempre se preocuparam com a idéia errônea do entesouramento como um comportamento negativo, e sempre que possível criminalizando tais condutas e perseguindo os cidadãos indefesos, quando os austríacos fartamente têm demonstrado que assim as pessoas agem corretamente, isto é, de acordo com o uso previdente dos seus recursos, a serem aplicados prudentemente para as aplicações mais urgentes e mais economicamente viáveis e eficientes.
Em uma dada crise qualquer, sob um cenário de ampla liberdade econômica e com uma moeda confiável, um momento de parada pode acontecer (se bem que desconfio ser muito difícil), e isto é necessário para que os agentes econômicos possam, ao mesmo tempo em que poupam, refletir para onde remeterão seus recursos. Aos poucos, toda a atividade retorna a um estado de dinamismo. Se uma economia de uma sociedade qualquer foi fundada sobre o plantio do fumo, por exemplo, e a população mundial já não deseja mais este produto, então uma intervenção estatal que engane as pessoas quanto a inspirar-lhes um falso sentimento de confiança só tem o condão de fazê-las produzir mais do que ninguém quer, quando deveriam parar para pensar um pouco e plantar, talvez, milho ou soja. Mais ou menos assim se deu a crise do café brasileiro naquela mesma época.
Adiantemo-nos, para analisar outro parágrafo a seguir:
Neste ponto podemos introduzir a crítica de Milton Friedman, no sentido de que não seria necessário o aumento do dispêndio público para estimular a demanda agregada, bastando para tanto que se emitisse moeda até a desobstrução dos canais entupidos e que se reduzisse a carga tributária sobre indivíduos e empresas. Mas, ainda assim, permaneceriam válidos os pressupostos da política fiscal compensatória de Keynes que, lastreada numa maior propensão a gastar do setor público em períodos de crise de confiança, faz prever um significativo acréscimo na demanda global quando recursos são transferidos da população, contida pelas incertezas do momento, para as agências governamentais gastadoras. A análise keynesiana segue, mostrando que o efeito estimulador será maior se o gasto público for financiado por endividamento em lugar de impostos e ainda maior caso as despesas sejam cobertas por emissões monetárias.
Consideremos as aplicações de recursos, das mais racionais para as menos acertadas, e dentre estas últimas, apenas para compreendermos o efeito prático de um investimento totalmente inútil, pensemos que o governo empregasse milhares de pessoas para cavar buracos pela manhã e logo em seguida, no turno da tarde, para tapá-los. Deste modo, todas as demandas para as empresas empreiteiras estariam garantidas e o problema do desemprego também estaria resolvido. Todavia, em quê isto ajudaria a trazer mais pão para a mesa, roupas e remédios para o corpo e tetos para as cabeças? Na verdade, o efeito de tal medida seria fazer com que os donos das empreiteiras e os seus empregados, com dinheiro na mão, passassem a disputar os bens e serviços produzidos por outrem, rareando-os e encarecendo-os, feito que seria impossível de pagar com um meio de troca fisicamente insubstituível (impossível de falsificar) tal como o ouro.
Por outro lado, Hans-Hermann Hoppe nos ensina brilhantemente que as emissões de moeda não atingem por igual todos os setores da economia. Desde o momento que saem das impressoras até o momento em que tais expansões monetárias são percebidas pelos agentes econômicos, há uma hierarquia no rito da sua distribuição que privilegia em primeiro lugar os funcionários públicos e os empreiteiros - os primeiros a se beneficiarem antes que o poder de compra de suas notas se definhe, até os que receberão por último, possivelmente os trabalhadores das empresas privadas que não mantém negócios com o governo e os que vivem de bicos e trabalhos temporários. Dizendo de outro modo, dizemos que as expansões monetárias beneficiam os não-produtores, enquanto causam um ônus - que jamais será recuperado - pelos que trabalham e produzem, e com isto, a economia recebe uma cadeia progressiva de estímulos para a não produção eficiente. Como isto poderia ajudar uma sociedade a se recuperar?
Mais um pouco de paciência, por favor:
"Se Keynes e sua obra têm méritos indiscutíveis, o mesmo não se pode dizer de muitos de seus seguidores e dos que se apropriam e distorcem suas idéias para fins não endossáveis pelo autor. Duas categorias de “keynesianos” aqui se destacam: os que apontam falhas no funcionamento dos mercados para defender o ideário socialista e a classe de políticos e governantes que, sedenta de poder, procura respaldar-se no “rationale” oferecido pelo mestre inglês para justificar despesas direcionadas a grupos de interesse, empregar protegidos e criar organismos públicos geradores de “bons negócios”."
Ora, toda intervenção estatal sobre a economia constitui-se em uma prática socialista. O que difere o intervencionismo nas sociedades fechadas como a cubana e a norte-coreana do intervencionismo praticado em países como os Estados Unidos ou o Brasil são a quantidade e o alcance de tais atos, não a natureza deles. Igualmente, toda intervenção estatal acaba sempre por privilegiar um grupo em detrimento dos demais, de tal forma que as exceções apontadas pelo autor são, no limite, simplesmente inexistentes, ou melhor, redundantes.
Por fim, o Dr Rubem exorta as boas intenções do economista fabiano nos seguintes termos:
"Pouco antes de sua morte, Lord Keynes dirigiu-se ao ultra liberal Hayek demonstrando sua rejeição ao credo socialista. Em carta datada de junho de 1944, referiu-se ao recém lançado “O Caminho da Servidão” – obra em que Hayek associava o controle estatal sobre a economia ao totalitarismo – da seguinte forma: “Meu caro Hayek, trata-se, em minha opinião, de um grande livro. Todos nós temos razões de sobra para sermos gratos a você por exprimir tão bem tudo o que precisava ser dito. Estou, moral e filosoficamente falando, de acordo com o conteúdo integral desta obra. Não só de acordo, como de profundo e comovido acordo”."
Arrependimentos de última hora podem servir para nos levar ao céu, como assim testemunharia um dos ladrões que compartilhou com Jesus as agruras do infame madeiro; entrementes, não nos eximem de toda uma vida dedicada à execução das nossas escolhas. Por outro lado, os camaleônicos socialistas são sempre contumazes em nos dar tapinhas às costas enquanto cravam as suas adagas, de tal modo que não podemos reconhecer se tais declarações são, de fato, sinceras. De todo modo, para quem quiser conhecer melhor o socialista fabiano John Mainard Keynes, sugiro o didático artigo "A teoria econômica de Lord Keynes e a ideologia triunfante do nosso tempo", de Alceu Garcia.
Concluindo: à vista retumbante do fracasso da aplicação das idéias keynesianas e da crescente prosperidade do pensamento liberal austríaco (falo do mundo todo), parece que o Dr Rubem de Freitas Novaes pretende arranjar um passaporte forjado para seu amigo socialista fabiano bretão, a fim de lhe dar salvo conduto no mundo dos pensadores, ou melhor, "miseanamente" falando, dos economistas - os autênticos - os capitalistas. Pois, sejamos como o agente da imigração zeloso, a dizer: "- Não, Mr Keynes, o Sr não está convidado. Seu lugar não é aqui. Volte para de onde veio".
1 - Doutor (PhD) em Economia pela Universidade de Chicago. Foi diretor do BNDES, presidente do SEBRAE, diretor/sócio de Bancos de Investimento e professor da EPGE/FGV.E é autor do livro Investimentos Estrangeiros no Brasil: uma Análise Econômica (editora Expressão e Cultura).
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