domingo, 1 de agosto de 2010

O polimento da vida

Por João Bosco Leal

Na nascente do rio, as pedras lascadas, vindas das profundidades, das rochas partidas, são pontiagudas, com suas faces retas, cortantes, e a água, nesse ponto, ainda não possui forças suficientes para empurrar tanto peso rio abaixo. Mas vai lavando suas laterais, que vão perdendo pequenos grãos, adquirindo limo em seu entorno e assim diminuindo seu peso e ficando mais lisas. Em um dia de chuva forte a mina produz mais água, que, juntamente com aquela vinda do céu, consegue virar a pedra para um pouco mais abaixo.


É o início do seu polimento, daquilo que essa pedra se tornará ao atingir a foz desse rio, anos depois. A diferença das pedras entre a nascente, ao longo e na foz dos rios é enorme. Enquanto levadas pelas águas, vão se atritando com outras pedras e objetos e vão sendo polidas. Na foz do rio, já estarão lisas, com as faces arredondadas, sem nenhuma aspereza, muito mais belas. Lavadas, são usadas em aquários, jardins, pesos para papeis, enfim, em qualquer lugar serão úteis e não prejudicarão nada à sua volta, não sujarão os papéis que prenderão e nem as águas dos peixes no aquário. São perfeitas para qualquer uso.

Assim é a vida, durante a qual os seres humanos vão sendo polidos. O primeiro atrito pelo que passa é físico, ao nascer, atritando-se com o corpo da própria mãe e sofrendo, pela primeira vez, o impacto do oxigênio em seus pulmões, que lá chegou após passar, também pela primeira vez, por todas as suas vias respiratórias. O choque da luz do centro cirúrgico diretamente em seus olhos é enorme. Todos aqueles sons, entrando por seus canais auditivos sem os filtros do líquido amniótico, do útero e da própria barriga da mãe, são de uma violência enorme.

A mudança de temperatura, os primeiros contatos físicos em sua pele, tudo é novo, e aí o susto, o choro. É assim, como a pedra na nascente do rio, o início de seu polimento como ser humano, que ocorrerá durante toda a vida. E será sempre assim, com atritos, contatos, tombos, sons e pancadas, maiores ou menores, que a vida lhe tratará. Só seus pais passarão a mão em sua cabeça, dando-lhe afeto, carinho e perdoando-lhe todos os erros. A vida não. A vida lhe dará respostas proporcionais às suas ações e, dessa maneira, dará a oportunidade dele mesmo escolher, de como aprender, se relacionar, enfim, de como viver, com mais ou menos facilidade, caindo mais ou menos, apanhando mais ou menos, tendo mais ou menos sucesso e, principalmente, de como será lembrado, pois dependendo de suas escolhas, poderá permanecer sendo lembrado entre os homens durante séculos.

O que importa é que, na maturidade, independentemente da facilidade ou dificuldade com que lá chegou, pois as escolhas foram sempre suas, o ser humano estará polido, pronto, sabendo os “como e porquês” e poderá, então, por um determinado tempo, enriquecer as rodas de bate-papo com a conversa agradável, inteligente, aquela da sabedoria com simplicidade. Pena que por um período pequeno, bem menor que o já vivido, pois começa então uma nova fase, a do retorno, quando perderá todas as capacidades adquiridas e viverá novamente como um bebê, com os filhos fazendo o papel que era seu, determinando-lhe tudo.

Aí, meu amigo, é o fim, mas isso já não importa, pois essa pessoa não se lembrará nem do começo, nem dos amigos, nem dos filhos e muito menos de que a próxima etapa se aproxima, mas, se teve a felicidade de chegar até esse ponto, de ter vivido todas as fases, de ter passado por todo o polimento, terá chegado, como a pedra na foz, a um universo muito maior.

Estarão, nesse ponto, tal pessoa e a pedra, prontos para uma nova etapa, desconhecida, e de uma amplitude muito maior, inimaginável.

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