Publicado originalmente no site Ordem Livre, em 02 de Agosto de 2010, e extraído do blog do autor, "Diplomatizzando".
Explicações simplistas, como a “teoria” marxista da “exploração”, podem ser admitidas em pessoas de baixa instrução e de pequena capacidade de raciocínio; que também sejam partilhadas por universitários e até por pessoas tidas por ‘intelectuais’ já revela uma insuficiência de compreensão de como o mundo funciona realmente. Isso só pode ser fruto de miopia ideológica ou de desonestidade intelectual, quando não é demonstração de ignorância histórica, pura e simples.
Este é, provavelmente, um dos mais equivocados, mas persistentes, “axiomas” da teoria social dita de esquerda sobre as origens das desigualdades entre as pessoas e os países. Embora não especificamente marxista em sua origem, foi com o marxismo que essa “tese” se difundiu e adquiriu ares de “evidência histórica” como nunca tinha sido o caso no pensamento utópico das correntes socialistas anteriores. De fato, desde Babeuf (e sua “conjuração dos iguais”), passando por Proudhon – “A propriedade é um roubo” – e pelos anarquistas de todas as tendências (menos os anarco-capitalistas, claro, que são mais exatamente libertários), “progressistas” de todas as cores vêm repetindo (em todas as variantes possíveis, e com sucesso) esse credo aparentemente plausível, mas redondamente falso e, no limite, intelectualmente desonesto.
A partir do Manifesto Comunista (1848), que sacraliza a ‘interpretação materialista’ da história como sendo o desenvolvimento da luta de classes desde o começo dos tempos – entre amos e escravos, senhores feudais e servos, burgueses e proletários –, e dos diversos volumes do Capital, que colocam no centro da “teoria da exploração” a extração de mais-valia, o “axioma” ganhou ares de verdade científica, posto que se conformando aparentemente às evidências prima facie. Sim, é um fato que as sociedades são desiguais, internamente e entre si, que algumas categorias sociais são imensamente ricas, enquanto os pobres formam a maioria da população, assim como os países pobres constituem a maioria da comunidade internacional. Daí é fácil chegar à conclusão de que os ricos se apropriaram de riqueza criada pelos pobres e que os países avançados se tornaram ricos porque exploraram – pela via do colonialismo e do imperialismo – países da periferia dominada e oprimida. A relação de exploração e de intercâmbio desigual perduraria até hoje, como “atestam” dezenas de discursos na ONU, e em várias de suas agências, e os representantes desses países.
Universitários ainda são instruídos (como se o livro constituísse verdade histórica incontestável) com a mais inacreditável salada terceiro-mundista de que se tem notícia desde o aparecimento do conceito, consagrado no obsessivamente editado As Veias Abertas da América Latina, cujo autor – devidamente identificado como o “mais perfeito idiota latino-americano” – se serve de todos esses equívocos simplistas para provar que a região poderia ter sido rica e desenvolvida não fosse pela “exploração colonialista” das potências ibéricas e pela “dominação imperialista” dos Estados Unidos. Estupidamente, a “exploração” começa desde o descobrimento, como se a América Latina pudesse ser o que ela é hoje sem o seu passado colonial.
Sem recusar a realidade da dominação e da exploração, e até mesmo do “intercâmbio desigual” – relações que se encontram em todas as situações possíveis, desde o ambiente familiar até um contrato juridicamente perfeito –, cabe descartar como insustentável a tese da acumulação de riqueza numa ponta, como o resultado da extração dessa mesma riqueza na ponta miserável. Mesmo as situações de dominação direta e de exploração pela força bruta, são derivadas de um diferencial anterior de produtividade e de capacitação tecnológica. Afinal de contas, ninguém é imperialista apenas como expressão de uma vontade dominadora, ou por puro ato de barbárie: não se é imperialista porque se quer, mas apenas porque “se pode”.
Para dominar um outro povo, é preciso, antes de tudo, dispor de um aparato produtivo moderno – que se reflete, obviamente, no poder de fogo dos canhões; é necessário, também, uma organização econômica superior, para poder “extrair recursos”; estes são os requisitos prévios e indispensáveis ao ato de dominação. Ou seja, é preciso ter feito a sua “acumulação primitiva” de fatores de dominação e de exploração, e não exatamente no sentido marxista da expropriação direta, mas no da aquisição preliminar de “meios de exploração” produtiva: em geral, ninguém se torna mais capaz explorando camponeses analfabetos e trabalhadores ignorantes.
Na origem das desigualdades entre os povos, e dos diferenciais de renda entre as pessoas, situa-se um fator econômico relativamente simples no seu conceito, mas provavelmente complicado nas suas diversas manifestações concretas: ele se chama produtividade do trabalho e condensa aquilo que numa terminologia marxista se poderia designar por ‘modo inventivo de produção’. Ele significa que um sistema econômico mais eficiente é necessariamente constituído por pessoas altamente produtivas – e, portanto, com uma educação de qualidade – capazes de reter os frutos do seu trabalho (o que se chama direitos de propriedade, normalmente garantidos pelo estado). Sistemas desse tipo eram, na prática, inexistentes até uma fase relativamente recente da história da humanidade; seu aparecimento não decorre da revolução industrial; ao contrário, é esta que decorre daqueles fatores, segundo Douglass North.
As diferenças entre os países – que eram, até então, relativamente homogêneos em sua baixa produtividade agrícola – começam a se aprofundar a partir desse crescimento acelerado da produtividade, num processo que os historiadores econômicos chamam de “grande divergência”. Com exceção de uma reduzida elite, sempre abastada em todas as épocas e sociedades, os níveis de vida de “ricos” e “pobres” não conheciam diferenças radicais; mesmo um conhecido milionário, como o banqueiro Nathan Rothschild poderia – como de fato ocorreu – morrer de uma simples infecção provocada por um arranhão.
O mesmo Rothschild, aliás, não ficou rico explorando os pobres, ainda que ele tenha emprestado bastante dinheiro para países “emergentes”, como o Brasil imperial e o da Velha República; seus lucros fabulosos decorreram de empréstimos para os próprios países ricos, ou melhor, para os reis, príncipes e os governos desses países. O fabuloso poderio militar, as proezas tecnológicas e a riqueza da sociedade americana não derivam da exploração de países pobres, ao contrário: as empresas americanas são capazes de “explorar” esses países justamente por dispor de uma tecnologia superior e de uma organização dos negócios mais eficiente do que as dos “explorados”.
Em outros termos, renda, riqueza e poder são o resultado da eficiência do sistema econômico e da produtividade do trabalho daqueles que são responsáveis pela organização do sistema, não o produto da exploração de outros povos e trabalhadores, ainda que essa realidade também exista (mas ela não é o centro, nem a chave explicativa das diferenças e das desigualdades distributivas entre povos e pessoas). Bill Gates, por exemplo, o Rothschild de nossa época, nunca extraiu um quilo sequer de matéria prima de qualquer país que fosse: sua riqueza é fruto da pura inteligência.
Explicações simplistas, como a “teoria” marxista da “exploração”, podem ser admitidas em pessoas de baixa instrução e de pequena capacidade de raciocínio; que também sejam partilhadas por universitários e até por pessoas tidas por ‘intelectuais’ já revela uma insuficiência de compreensão de como o mundo funciona realmente. Isso só pode ser fruto de miopia ideológica ou de desonestidade intelectual, quando não é demonstração de ignorância histórica, pura e simples. Enfim, nada que a leitura de bons livros de história e de manuais honestos de economia não consiga remediar.
Creio que os acadêmicos marxistas precisam melhorar a produtividade de suas leituras: eles não têm nada a perder, a não ser os grilhões ideológicos que os prendem a explicações ultrapassadas. Eles têm um mundo inteiro a ganhar...
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