segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O que há por trás do golpe no TCU

Por Klauber Cristofen Pires

Em um breve interregno vem a lume por amplíssima maioria e alarde uma lei chamada de "ficha-limpa", seguida depois por uma lei de diretrizes orçamentárias cuja principal característica é marcada pela blindagem de empresas públicas e de obras quanto à aplicação da lei de licitações e principalmente, da fiscalização do TCU. Paradoxo? Apenas aparentemente...


Já comentei sobre esta empulhação que é a lei da ficha-limpa, cujo resultado já estão aí para todos verem: uma espécie de dumping eleitoral: o que separa hoje um candidato "limpo" de um"sujo" é a sua capacidade de denunciar e de se safar de denúncias e de condenações. Absolutamente ninguém do mensalão foi "fichado". No fim das contas, como tenho lido, esta lei não terá vida longa, eis que vem sendo questionada quanto à sua constitucionalidade, com o que concordo plenamente (Embora eu não concorde com um sistema processual extremamente lento, em que abundam as fórmulas de exceção e procrastinação, e por que não dizer, sim, corrupto).

Passo então a comentar sobre as mudanças polêmicas concretizadas por meio da lei de Diretrizes Orçamentárias.

Não discordo que a nossa prolixa legislação de licitações constitua um verdadeiro estorvo para a boa administração pública. Pelo contrário, e explico isto logo adiante. Todavia, aponto o oportunismo de se legislar casuisticamente para os casos de interesse eleitoral do Sr Lula e de seu partido, e aí é de se apontar o desvio de finalidade atentatório do princípio constitucional da moralidade pública e potencialmente danoso ao patrimônio público, sendo daí duplamente decorrente a possibilidade de impetração de uma Ação Popular por expressa autorização do art. 5º, LXXIII - "qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;"

Qual o caso com a lei de licitações? Trata-se de uma longa história...

Qualquer licitação pública é necessariamente caracterizada pelo rigor formal. Isto porque os atos devem ser praticados segundo o rito, no momento certo, e de acordo com os requisitos previstos na legislação e no edital. Aqui estou falando de qualquer lei de licitações em qualquer lugar do mundo, segundo as características inerentes a ela. Por exemplo, se no envelope da proposta de uma concorrência vier anexado, mesmo que por engano, algum documento de identificação da empresa candidata, aquela proposta estará irremediavelmente desclassificada, e se a comissão houver por aceitá-la, todo o procedimento licitatório tornar-se-á nulo. Outro exemplo: se um dos envelopes tiver sido aberto antes da abertura do certame, todo o ato de abertura dos envelopes estará viciado, devendo ser anulado e marcada outra data, em que os candidatos apresentarão novas propostas.

Em regra estes eventos são extremamente tensos. Nos certames presenciais, os candidatos fiscalizam-se uns aos outros para buscar falhas nas propostas dos demais. Qualquer mínimo erro pode causar a anulação de um procedimento que levou meses de preparação.

Assim sendo, um procedimento já por si deveras complexo e formal deveria ver respeitada a sua incolumidade quanto à sua finalidade precípua. Entretanto, com o progressivo agigantamento do estado, à legislação licitatória foram sendo enxertadas várias outras políticas de estado, entre as quais as fiscais, trabalhistas, previdenciárias, sociais e de intervenção no domínio econômico, de tal forma que o procedimento licitatório tornou-se um imbróglio mais que temerário para os administradores, comissões e pregoeiros.

Por primeiro, a Lei nº 8.6666/93 instituiu a exigência inconstitucional de regularidade fiscal, no que foi seguida depois pela ainda mais inconstitucional exigência de inscrição no SICAF como requisito de participação em licitações (mais tarde o TCU houve por decidir pela extinção da obrigatoriedade de cadastramento no SICAF, embora mantida a obrigatoriedade de apresentação das respectivas Certidões Negativas de Débito da Receita Federal e Dívida Ativa (hoje integradas), FGTS, INSS, balanço, e os tributos estaduais e municipais).

Em 1995, foi promulgada a Lei 9032/1995, que modificou a redação do §2º do art. 71 da Lei 8.666/93, para responsabilizar solidariamente a Administração Pública por débitos previdenciários das empresas com quem mantém contratos, nos seguintes termos: "A Administração Pública responde solidariamente com o contratado pelos encargos". Tal gravame legal tornava especialmente severa a aplicação do art. 41 da Lei 8212/91, o qual responsabilizava pessoalmente os administradores pelas multas decorrentes da sua inobservância, em franca contramão ao princípio de Direito Administrativo da impessoalidade, da responsabilidade objetiva do estado e da ação regressiva, que felizmente veio a ser revogada pelo art. 79, I, da Lei 11.941/2009.

Com Lei Nº 9.854/1999, as empresas passaram a ser obrigadas a declarar junto com as suas propostas que não empregam menores, salvo da condição de aprendiz. Posteriormente, veio ao mundo jurídico a bizarra e também inconstitucional Lei Complementar nº 123/2006, que estabeleceu privilégios para micros e pequenas empresas, com certames exclusivos e regras de prioridade de desempate em pregões. Aqui registro a inconformidade emocionada de diversos participantes que me ligavam por ocasião dos certames em que atuei como pregoeiro para protestar por terem sido preteridos por microempresas quando haviam se consagrado como vencedores nos lances. Trata-se de uma situação muito humilhante, constrangedora e injusta.

Como se a licitação pública já não estivesse com as bruxas soltas o suficiente, veio o Tribunal Superior do Trabalho, e mesmo contra expressa previsão contida no §1º do art. 71 da Lei 8.666/93, a isentar a Administração pública dos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais de suas empresas contratadas, estabeleceu por meio do Enunciado 331[i] (Resolução 96/2000) que qualquer pessoa que contratar uma empresa para fazer uma obra, ou para lhe prestar serviços tais como o de vigilância, limpeza e conservação, há de se tornar responsável subsidiária pelos créditos trabalhistas dos empregados destas empresas, de acordo com a seguinte redação: "IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993). (Alterado pela Res. 96/2000, DJ 18.09.2000)".

A disposição acima entornou o caldo, de tal forma que hoje circula uma instrução normativa editada pelo Ministério do Planejamento no sentido de obrigarem os fiscais de contratos a reterem estas parcelas em contas separadas, para então efetuarem diretamente o pagamento aos empregados das empresas de obras e de terceirização contratadas. Em outras palavras, o estado transferiu os setores financeiros, de RH e de contabilidade das empresas para dentro de suas próprias repartições. Na prática, contratar tornou-se um procedimento quase inviável e de todo modo, um risco extremo para os servidores públicos envolvidos. Afinal, quem há de adivinhar o que venha sair de um julgamento pela justiça trabalhista?

Por tudo isto, é sustentável a tese de que muitos projetos têm sido atrasados por puro desinteresse dos servidores públicos em efetivá-los, temerosos de serem responsabilizados. Quando não, tantas exigências burocráticas acarretam em escala geométrica o abarrotamento dos processos licitatórios com impugnações e recursos administrativos e judiciais.

Com a explicação acima, fica mais claro que o governo Lula buscou livrar-se de tantas amarras, muitas das quais ajudou a dar os nós, especialmente para tocar as obras que lhe interessam e livrar as empresas públicas sobre as quais pesam suspeitas contundentes de malversações de recursos públicos da fiscalização do TCU. Dois coelhos para uma só tacada.

Assim como fiz a comparação lá no primeiro parágrafo, a lei da ficha limpa veio para dar um jeitinho de se subtrair ao caótico sistema processual penal, e é nisto que sou contra, eis que ninguém pode ser considerado culpado senão em trânsito em julgado de última instância, segundo o art 5º da nossa Constituição. Se temos algo errado aqui, vamos consertar, que é o moroso processo judicial favorecedor da impunidade. Pois, exatamente o mesmo se passa agora com a lei de licitações. Se mais parece uma obra surrealista, que o governo conclame o Congresso e ambos trabalhem por uma legislação que torne as licitações céleres, justas e desburocratizadas.

Por fim, outro fato também precisa ser comentado. Em toda a minha vida como servidor público, sempre deparei-me com colegas de profissão com ares de sabichões, muitos deles com um botão da estrela vermelha pregados em seus paletós, a receitarem as maravilhas do planejamento como solução para tudo. Pois, até hoje o governo federal não possui um sistema de planejamento integrado com um sistema de previsão orçamentária satisfatórios. Para uma licitação ter sucesso, a fase mais complicada e que demanda mais pesquisa é justamente o da explicitação do objeto e o da previsão orçamentária, tarefas que ficaram para os últimos minutos do segundo tempo, para usar uma linguagem reconhecível pelo Supremo Apedeuta. Não surpreende, portanto, que, atrasada a fase de execução, tenha buscado cortar caminho por amputar a lei de licitações e as prerrogativas do Controle Externo.

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