quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Breve Ensaio sobre a Jurisprudência


O bom direito não se decreta, mas se descobre!


Por Klauber Cristofen Pires


Quando o assunto é estabilidade naval, um problema que não pode ser descuidado é o da mecânica dos fluidos.

Havendo algum balanço na embarcação devido à força das ondas, as cargas sólidas mantêm o eixo longitudinal de gravidade inalterado, de modo que o maior peso situado abaixo desta linha devolve a embarcação ao zero grau de inclinação.

Com as cargas líquidas o comportamento difere, vez que estas se acomodam na nova posição, fazendo com que seu eixo de gravidade se desloque de sua posição original. Como resultado, a embarcação tende a se manter adernada a cada novo grau de inclinação a que tiver sido submetida pelas vagas, sem retornar ao prumo, até que venha a tombar e afundar.

Certamente, há medidas até razoavelmente simples para evitar tal indesejada situação, mas por ora, interrompo aqui esta pequena aula de engenharia naval para, valendo-me dela como ilustração, introduzir o objeto real do presente texto: refiro-me ao deslocamento do eixo de gravidade no sistema jurídico capaz de levar a pique toda a sociedade.

Como isto pode vir a acontecer? Alguém pode alegar que leis infelizes sejam potencialmente causadoras de problemas, o que pode ser verdade, mas as leis podem ser mudadas, corrigindo assim a situação problemática. Então, indo mais longe, outro há de erguer o braço para citar as cláusulas constitucionais pétreas, e aí estamos mais perto de uma boa resposta, mas elas são poucas e em sua maior parte prescrevem direitos negativos, incapazes, portanto, de causar problemas de inconformidade entre os cidadãos.

Todavia, sem desmerecer de todo a causa constitucional ou legislativa, cuja culpabilidade para o “adernamento” da harmonia social não pode ser desprezada, venho aqui salientar outra origem, esta sim, a meu ver, assaz olvidada: as decisões de alcance geral (“erga omnes”) e especialmente, as “súmulas vinculantes”.

Decisões judiciais de alcance geral, sejam as do tipo “erga omnes” ou as súmulas vinculantes, acabam criando um efeito legislativo do ponto de vista material. Obviamente, não são todas as decisões privilegiadas com tal abrangência as que causam risco à estrutura sócio-jurídica de um país, mas sim as desacertadas, equivocadas ou, quem sabe, até mesmo tramadas com vistas a alcançar fins diversos da Justiça.

Em suma, o problema que aqui se apresenta é o seguinte: tudo vai bem quando o STF, ao exercer o seu papel de “guardião da Constituição”, profere uma decisão de alcance geral (“erga omnes”) ou uma súmula vinculante que se enquadram perfeitamente nos ditames da Carta Magna e ainda mais, no senso natural de justiça que habita em cada um dos cidadãos. Porém, que dizer quando isto não se acontece? Quais as consequências quando tais decisões - que vêm a lume revestidas da armadura da perenidade, isto é, que há de valerem para sempre ou até que nova lei ou novo artigo constitucional criem uma nova situação – seja por erro ou propositalmente se afastam dos princípios que devem reger uma sociedade livre e um estado de direito?

Em sua milenar e famosa obra A República, Platão nos adverte de tamanho dilema por meio do diálogo entre Sócrates e Polemarcoi:

Sócrates: “ - Logo, quem é capaz de se defender de uma doença, é também o mais capaz de a transmitir despercebidamente?”

Polemarco: “ - É o que me parece.”

Sócrates: “ - Mas, na verdade, será um bom guardião do exército aquele mesmo que roubar os planos do inimigo e o lograr nas suas operações?”

Polemarco: “ - Exatamente.”

Sócrates: “ - Logo, se uma pessoa for um hábil guardião de uma coisa, é também um hábil ladrão da mesma.”

Polemarco: “Assim parece”.

Por sua vez, o historiador Garet Garrettii também registra este fenômeno curioso nos EUA (minha tradução):

Tome o ano de 1898. A República tinha então 110 anos; e este foi propriamente o seu último aniversário.

...

Em uma geração:

...

Ele (o americano) havia aprendido que a Constituição era o que a Suprema Corte dissesse o que ela era... (grifos meus)


Ainda com relação ao direito constitucional norte-americano, convém destacar o entendimento firmado pela Suprema Corte daquele país desde o início dos anos 40 no sentido de que a liberdade de expressão (“freedom of speech”) não alcança a propaganda comercialiii, muito embora a Constituição não estabeleça absolutamente nenhuma exceção; aliás, muito ao contrário, a Primeira Emendaiv estatui que “o Congresso não deverá fazer nenhuma lei com respeito ao estabelecimento de um religião, ou proibindo o seu livre exercício; ou limitando a liberdade de expressão, ou da imprensa;...).

É bem possível que a Suprema Corte tenha agido de tal forma porque ainda traumatizada pela ameaça de substituição de todos os juízes, lançada pelo então presidente Franklin D. Roosevelt, notório por suas ambições intervencionistas, no caso que ficou marcado na história como “a mudança em tempo para salvar os nove” (“The switch in time that saved nine”), como meio para que conseguisse a aprovação da lei do salário-mínimo.

No Brasil, são citáveis inúmeras decisões tomadas pelo STF que divergem do entendimento de vários juristas, bem como também do meu e de outras pessoas que embora leigas no âmbito jurídico detenham notável conhecimento em outras áreas importantes ou sejam dotadas de um bom senso razoavelmente acurado.

Algumas dessas que tenho por desastrosas foram a da legitimação da constitucionalidade da substituição tributária progressivav e a do casamento gayvi, a primeira a permitir ao estado locupletar-se com riqueza privada ainda inexistente (porque ocorrida antes do fato gerador) e a segunda, além de flagrantemente usurpar as funções do Poder Legislativo e decidir mesmo contra a opinião majoritária da população, por acarretar mudanças profundas na estrutura familiar e social que podem acarretar graves conflitos de ordem moral e religiosavii.

Tem sido dito que o papel do STF é o de pacificar o entendimento sobre questões de ordem constitucional, ao criar uma jurisprudência sobre determinado assunto, e que as súmulas vinculantes vieram como uma resposta à crescente demanda pelos serviços judiciários.

É de se concordar que uma decisão de abrangência geral baixada pelo máximo órgão judicial do país uniformize futuros julgamentos e certos direitos, mas nem de longe isto pode ser considerado como a “pacificação” de uma questão ou o assentamento de uma “jurisprudência” sobre ela.

Não pode haver algo que mereça ser chamado de “pacificação” quando os direitos naturais legítimos dos seus donos são aviltados. Quando isto acontece, o “eixo de gravidade” da sociedade se desloca, orientando as futuras condutas de todos os cidadãos, que procurarão se adaptar à nova situação, até que em algum momento-limite uma simples fagulha deflagre uma revolta.

Destarte, o que se deve entender propriamente por jurisprudência é a tradicional coleção de decisões judiciais num mesmo sentido. Em outras palavras, o bom direito não se decreta, mas se descobreviii, e isto acontece aos poucos, entre as comparações das consequências de cada decisão, caminhando entre erros e acertos, numa dinâmica sem sem solução de continuidade. Distingue-se em muito, portanto, de uma decisão verticalizada e universal.

Por sua vez, as súmulas vinculantes não resolvem o problema dos administrados, mas simplesmente lhes negam os direitos naturais e constitucionais de petição e de acesso ao julgamento justo e imparcial. Que a súmula vinculante tenha sido apresentada como a solução para uma demanda crescente junto ao Poder Judiciário, isto somente oculta o vero fato de que o maior causador de litígios é o próprio estado, que com sua ânsia intervencionista tem conquistado a incrível marca de 95% dos processosix em andamento na justiça, segundo notícia divulgada pela Agência Brasilx.

Pode-se dizer que sem um órgão guardião da Carta Magna alguns cidadãos vão ser prejudicados pelas más decisões de tribunais inferiores, e têm razão nisto. Contudo, a falibilidade é a própria condição do ser humano. Porém, muito mais desastrosa será a decisão proferida de forma igualmente errônea, que imponha prejuízo a todos os cidadãos atingidos por ela, e o que é pior, sem que haja doravante nenhuma oportunidade de apelo ou de revisão – o mecanismo que poderia levar a nau novamente ao prumo.

Em um sistema difuso de constitucionalidade, isto é, aquele em que qualquer juiz ou tribunal está capacitado a exercer sobre um caso concreto, as melhores decisões vão se sobrepujando às piores, se modo que assim o sistema jurídico vai se renovando, vai se corrigindo, vai se harmonizando, e vai se tornando tanto mais saudável quanto o processo legislativo se entrosar com ele. Ademais, vivêssemos em um país efetivamente federalista, as diferenças entre as decisões influenciariam o progresso de cada estado, realçando aqueles cujo sistema jurídico se destacasse como o mais evoluído e mais depurado.

São estas as reflexões que por ora fazem pesar em meu entendimento a desnecessidade de um órgão judiciário central que detenha o poder de interpretar, em última instância e para todos os cidadãos, as cláusulas e o espírito da Constituição.

i         Platão. A República. Martin Claret, 2008 2ª ed. São Paulo-SP p.19
ii        GARRETT, Garet, The American Story. The Ludwig von Mises Institute. Auburn, Alabama, 2009 p. 171-172:
iv         Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá! Seja benvindo! Se você deseja comunicar-se, use o formulário de contato, no alto do blog. Não seja mal-educado.