O bom direito não se decreta, mas se descobre!
Por Klauber Cristofen Pires
Quando o assunto é estabilidade naval,
um problema que não pode ser descuidado é o da mecânica dos
fluidos.
Havendo algum balanço na embarcação
devido à força das ondas, as cargas sólidas mantêm o eixo
longitudinal de gravidade inalterado, de modo que o maior peso
situado abaixo desta linha devolve a embarcação ao zero grau de
inclinação.
Com as cargas líquidas o comportamento
difere, vez que estas se acomodam na nova posição, fazendo com que
seu eixo de gravidade se desloque de sua posição original. Como
resultado, a embarcação tende a se manter adernada a cada novo grau
de inclinação a que tiver sido submetida pelas vagas, sem retornar
ao prumo, até que venha a tombar e afundar.
Certamente, há medidas até
razoavelmente simples para evitar tal indesejada situação, mas por
ora, interrompo aqui esta pequena aula de engenharia naval para,
valendo-me dela como ilustração, introduzir o objeto real do
presente texto: refiro-me ao deslocamento do eixo de gravidade no
sistema jurídico capaz de levar a pique toda a sociedade.
Como isto pode vir a acontecer? Alguém
pode alegar que leis infelizes sejam potencialmente causadoras de
problemas, o que pode ser verdade, mas as leis podem ser mudadas,
corrigindo assim a situação problemática. Então, indo mais longe,
outro há de erguer o braço para citar as cláusulas constitucionais
pétreas, e aí estamos mais perto de uma boa resposta, mas elas são
poucas e em sua maior parte prescrevem direitos negativos, incapazes,
portanto, de causar problemas de inconformidade entre os cidadãos.
Todavia, sem desmerecer de todo a causa
constitucional ou legislativa, cuja culpabilidade para o
“adernamento” da harmonia social não pode ser desprezada, venho
aqui salientar outra origem, esta sim, a meu ver, assaz olvidada: as
decisões de alcance geral (“erga omnes”) e especialmente,
as “súmulas vinculantes”.
Decisões judiciais de alcance geral,
sejam as do tipo “erga omnes” ou as súmulas vinculantes,
acabam criando um efeito legislativo do ponto de vista material.
Obviamente, não são todas as decisões privilegiadas com tal
abrangência as que causam risco à estrutura sócio-jurídica de um
país, mas sim as desacertadas, equivocadas ou, quem sabe, até mesmo
tramadas com vistas a alcançar fins diversos da Justiça.
Em suma, o problema que aqui se apresenta
é o seguinte: tudo vai bem quando o STF, ao exercer o seu papel de
“guardião da Constituição”, profere uma decisão de alcance
geral (“erga omnes”) ou uma súmula vinculante que se
enquadram perfeitamente nos ditames da Carta Magna e ainda mais, no
senso natural de justiça que habita em cada um dos cidadãos. Porém,
que dizer quando isto não se acontece? Quais as consequências
quando tais decisões - que vêm a lume revestidas da armadura da
perenidade, isto é, que há de valerem para sempre ou até que nova
lei ou novo artigo constitucional criem uma nova situação – seja
por erro ou propositalmente se afastam dos princípios que devem
reger uma sociedade livre e um estado de direito?
Em sua milenar e famosa obra A República,
Platão nos adverte de tamanho dilema por meio do diálogo entre
Sócrates e Polemarcoi:
Sócrates:
“
- Logo, quem é capaz de se defender de uma doença, é também o
mais capaz de a transmitir despercebidamente?”
Polemarco:
“
- É o que me parece.”
Sócrates:
“ - Mas, na verdade, será um bom guardião do exército aquele
mesmo que roubar os planos do inimigo e o lograr nas suas operações?”
Polemarco:
“ - Exatamente.”
Sócrates:
“ - Logo, se uma pessoa for um hábil guardião de uma coisa, é
também um hábil ladrão da mesma.”
Polemarco:
“Assim parece”.
Por sua vez, o historiador
Garet Garrettii
também registra
este fenômeno curioso nos EUA (minha tradução):
“Tome
o ano de 1898. A República tinha então 110 anos; e este foi
propriamente o seu último aniversário.
...
Em
uma geração:
...
Ele
(o americano) havia aprendido que a Constituição era o que a
Suprema Corte dissesse o que ela era... (grifos
meus)
Ainda com relação ao direito
constitucional norte-americano, convém destacar o entendimento
firmado pela Suprema Corte daquele país desde o início dos anos 40
no sentido de que a liberdade de expressão (“freedom of
speech”) não alcança a propaganda comercialiii,
muito embora a Constituição não estabeleça absolutamente nenhuma
exceção; aliás, muito ao contrário, a Primeira Emendaiv
estatui que “o Congresso não deverá fazer nenhuma lei com
respeito ao estabelecimento de um religião, ou proibindo o seu livre
exercício; ou limitando a liberdade de expressão, ou da
imprensa;...).
É bem possível que a Suprema Corte
tenha agido de tal forma porque ainda traumatizada pela ameaça de
substituição de todos os juízes, lançada pelo então presidente
Franklin D. Roosevelt, notório por suas ambições
intervencionistas, no caso que ficou marcado na história como “a
mudança em tempo para salvar os nove” (“The switch in time
that saved nine”), como meio para que conseguisse a aprovação
da lei do salário-mínimo.
No Brasil, são citáveis inúmeras
decisões tomadas pelo STF que divergem do entendimento de vários
juristas, bem como também do meu e de outras pessoas que embora
leigas no âmbito jurídico detenham notável conhecimento em outras
áreas importantes ou sejam dotadas de um bom senso razoavelmente
acurado.
Algumas dessas que tenho por desastrosas
foram a da legitimação da constitucionalidade da substituição
tributária progressivav
e a do casamento
gayvi,
a primeira a permitir ao estado locupletar-se com riqueza privada
ainda inexistente (porque ocorrida antes do fato gerador) e a
segunda, além de flagrantemente usurpar as funções do Poder
Legislativo e decidir mesmo contra a opinião majoritária da
população, por acarretar mudanças profundas na estrutura familiar
e social que podem acarretar graves
conflitos de ordem moral e religiosavii.
Tem sido dito que o papel do STF é o
de pacificar o entendimento sobre questões de ordem constitucional,
ao criar uma jurisprudência sobre determinado assunto, e que as
súmulas vinculantes vieram como uma resposta à crescente demanda
pelos serviços judiciários.
É de se concordar que uma decisão de
abrangência geral baixada pelo máximo órgão judicial do país
uniformize futuros julgamentos e certos direitos, mas nem de longe
isto pode ser considerado como a “pacificação” de uma questão
ou o assentamento de uma “jurisprudência” sobre ela.
Não pode haver algo que mereça ser
chamado de “pacificação” quando os direitos naturais legítimos
dos seus donos são aviltados. Quando isto acontece, o “eixo de
gravidade” da sociedade se desloca, orientando as futuras condutas
de todos os cidadãos, que procurarão se adaptar à nova situação,
até que em algum momento-limite uma simples fagulha deflagre uma
revolta.
Destarte, o que se deve entender
propriamente por jurisprudência é a tradicional coleção de
decisões judiciais num mesmo sentido. Em outras palavras, o
bom direito não se decreta, mas se descobreviii,
e isto acontece aos poucos, entre as comparações das consequências
de cada decisão, caminhando entre erros e acertos, numa dinâmica
sem sem solução de continuidade. Distingue-se em muito, portanto,
de uma decisão verticalizada e universal.
Por sua vez, as súmulas vinculantes não
resolvem o problema dos administrados, mas simplesmente lhes negam os
direitos naturais e constitucionais de petição e de acesso ao
julgamento justo e imparcial. Que a súmula vinculante tenha sido
apresentada como a solução para uma demanda crescente junto ao
Poder Judiciário, isto somente oculta o vero fato de que o maior
causador de litígios é o próprio estado, que com sua ânsia
intervencionista tem conquistado a
incrível marca de 95% dos processosix
em andamento na justiça, segundo notícia divulgada pela Agência
Brasilx.
Pode-se dizer que sem um órgão guardião
da Carta Magna alguns cidadãos vão ser prejudicados pelas más
decisões de tribunais inferiores, e têm razão nisto. Contudo, a
falibilidade é a própria condição do ser humano. Porém, muito
mais desastrosa será a decisão proferida de forma igualmente
errônea, que imponha prejuízo a todos os cidadãos atingidos por
ela, e o que é pior, sem que haja doravante nenhuma oportunidade de
apelo ou de revisão – o mecanismo que poderia levar a nau
novamente ao prumo.
Em um sistema difuso de
constitucionalidade, isto é, aquele em que qualquer juiz ou tribunal
está capacitado a exercer sobre um caso concreto, as melhores
decisões vão se sobrepujando às piores, se modo que assim o
sistema jurídico vai se renovando, vai se corrigindo, vai se
harmonizando, e vai se tornando tanto mais saudável quanto o
processo legislativo se entrosar com ele. Ademais, vivêssemos em um
país efetivamente federalista, as diferenças entre as decisões
influenciariam o progresso de cada estado, realçando aqueles cujo
sistema jurídico se destacasse como o mais evoluído e mais
depurado.
São estas as reflexões que por ora
fazem pesar em meu entendimento a desnecessidade de um órgão
judiciário central que detenha o poder de interpretar, em última
instância e para todos os cidadãos, as cláusulas e o espírito da
Constituição.
ii GARRETT, Garet, The American Story. The
Ludwig von Mises Institute. Auburn, Alabama, 2009 p. 171-172:
iv Congress shall make no law respecting an establishment of religion,
or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom
of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to
assemble, and to petition the Government for a redress of
grievances.
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