Retornar a um sistema bancário sólido significa estender aos bancos as mesmas regras e incentivos que se aplicam a todo o resto da economia. Nada de privilégios. Nada de subsídios.
por Fernando Ulrich - extraído do IMB
"Dentre
todas as maneiras de se organizar o sistema bancário, a pior é justamente a que
temos hoje". Essas palavras foram proferidas por ninguém menos que
Sir Mervyn King, presidente do Banco Central da Inglaterra (Bank of England),
em outubro de 2010, no seminário anual realizado pela revistaThe Economist (o Encontro de Buttonwood) em Nova York. É difícil
discordarmos.
A
história do sistema bancário é repleta de crises, turbulências, euforias,
depressões, quebras generalizadas, altos lucros e flutuações
desenfreadas. E, não obstante, o setor parece não ter aprendido muita
coisa ao longo do tempo. O dilema do sistema bancário ainda nos assombra:
quando uma maioria de correntistas repentinamente resolve sacar o dinheiro de
suas contas, não há dinheiro suficiente nos cofres dos bancos.
Um
estudo do FMI, realizado em 2008, contabilizou 124 crises bancárias desde
1970. Vários países estão na lista. Devido à data do estudo, a
Islândia não foi incluída. E nem a Europa.
À
luz dos atuais eventos, faz-se necessário a pergunta: pode o atual sistema
bancário ser reformado? A declaração de Sir Mervyn King deixa implícito
que sim. Certamente há outras maneiras de se organizar o sistema
bancário. Implícita também nessa afirmação está o fato de que o sistema
bancário realmente já foi mais corretamente organizado. Mas então por que
o nosso atual sistema bancário é tão frágil? Por que, em vez de
progredir, regredimos nessa vital atividade econômica? Por que esta é a
única indústria que necessita de um emprestador de última instância? Por
que ela consegue fazer com que a economia de um país seja sua refém?
Quais são as reformas necessárias?
Abaixo,
uma tentativa de abordar resumidamente as principais características do nosso
atual sistema bancário. Em seguida, uma análise da estrutura de Basileia
III (os Acordos de Basileia III), a
qual, no momento, está sendo anunciada solenemente como a suposta ferramenta que
irá fortalecer a resiliência dos bancos a crises. Ao final, serão
levantadas algumas questões essenciais e, em seguida, apresentados os
princípios sobre os quais devem ser basear qualquer tipo de reforma bancária.
O
sistema bancário atual
São
vários os aspectos da atual prática bancária que devem ser discutidos.
Não obstante, vamos aqui restringir nossa análise às características que melhor
definem como os bancos operam nos dias de hoje. Os efeitos econômicos de
tais práticas são não apenas relevantes como também decisivos.
A
maturação descompassada
A
regra de ouro sobre como deveria funcionar o sistema bancário foi cunhada em
1853 por Otto Hübner, que disse que "ativos e passivos não devem ter suas
datas de maturação descompassadas". Mas este não é um problema
restrito aos bancos. Com efeito, todas as empresas têm de aprender a como
lidar com ativos e passivos que maturam em períodos de tempo distintos.
Seja uma produtora de aço ou um supermercado, os empreendedores têm de garantir
que seus passivos não vencerão antes de seus investimentos. Um problema
de liquidez pode acabar se transformando em um problema de solvência caso os
ativos tenham de ser vendidos a preços de liquidação ou caso os passivos não
consigam ser rolados.
Em
suma, os bancos emitem passivos de curto prazo (depósitos em conta-corrente, ou
seja, dívida com prazo de maturação zero) com o intuito de financiar
investimentos de longo prazo (por exemplo, empréstimos comerciais, hipotecários
etc.). Se os correntistas constantemente renovarem suas dívidas (isto é,
se absterem de sacar suas contas-correntes), os bancos não terão problemas de
liquidez. Os problemas surgem quando há uma mudança de comportamento e os
correntistas decidem tirar seu dinheiro dos bancos.
O
sistema bancário de reservas fracionárias
A
maturação descompassada é uma especulação de risco. E a prática de
reservas fracionárias é uma maturação descompassada em ampla escala.]
Se
um banco utiliza $100 em dinheiro em espécie que estava em uma conta-corrente
para emprestá-lo para um indivíduo qualquer a um prazo de maturação de dois
anos, o banco está incorrendo em uma maturação descompassada. Ele emitiu
$100 em passivos de curto prazo para financiar ativos de longo prazo. Se
ele não conseguir converter esse ativo em $100 quando for demandado pelo
correntista, o banco estará insolvente.
No
entanto, no atual sistema bancário de reservas fracionárias, os bancos
normalmente não emprestam o dinheiro em espécie que foi depositado. Eles,
em vez disso, criam uma nova conta-corrente (formada unicamente por dígitos
eletrônicos), cujo valor é então concedido como empréstimo. Desta forma,
o balancete de um banco irá mostrar um total de $200 na forma de depósitos em
conta-corrente, sendo $100 em dinheiro em espécie e $100 em empréstimos (com
dinheiro exclusivamente eletrônico). Portanto, o banco possui 50% de
dinheiro em espécie (reservas) para honrar seu passivo de $200. Ele
possui apenas uma "fração" como reserva. Ao constatarem que os
correntistas raramente retiram seus fundos, os bancos se sentem confiantes para
expandir o crédito, concedendo empréstimos em quantias várias vezes superiores
ao dinheiro originalmente depositado. Bancos, desta forma, criam dinheiro
"ex nihilo". Ou, como descrito nos atuais livros-texto
de economia, eles multiplicam dinheiro. Trata-se do "multiplicador
monetário" (mais detalhes abaixo).
Portanto,
por meio da prática de reservas fracionárias, os bancos podem emitir passivos
de curto prazo ao mesmo tempo em que mantêm apenas uma pequena fração de ativos
líquidos de curto prazo, sendo que a vasta maioria dos ativos está na forma de
investimentos de longo prazo. Ao longo da história, a maioria dos bancos
mostrou-se incapaz de sobreviver durante muito tempo seguindo esta prática, dado
que eles simplesmente não eram capazes de restituir todo o seu passivo em
espécie (no passado, ouro; no presente, cédulas criadas pelo banco
central). A criação de um banco central foi a consequência lógica desse
arranjo, uma criação com o objetivo de remediar essa falha.
Bancos
centrais
Praticamente
todos os países do planeta possuem no núcleo de seu sistema financeiro um banco
central, cujas funções precípuas são a emissão de moeda nacional e o controle
das taxas de juros (controlando desta forma a oferta monetária), e que age como
emprestador de última instância ao setor bancários em momentos de crise.
Adicionalmente, vários bancos centrais também assumem uma função regulatória
com o objetivo de supervisionar os bancos, implementando uma miríade de
regulamentações que tentam garantir a estabilidade do sistema financeiro.
O
sistema bancário de reservas fracionárias não somente é monitorado como também
é estimulado pelo banco central, cuja principal ferramenta de política
monetária é o mecanismo dos "depósitos compulsórios", isto é, a estipulação
da quantidade de dinheiro que um banco deve manter como reserva para seus
depósitos. Ao reduzir a fração de reservas que os bancos são obrigados a
manter, o banco central permite que o sistema bancário aumente o
"multiplicador monetário". Os bancos podem agora expandir mais
crédito em cima de uma mesma quantidade de reservas.
Até
aqui, foram abordados de maneira descritiva apenas os aspectos mais essenciais
do sistema bancário atual, com o objetivo de nos prepararmos para a análise a
seguir. À medida que prosseguirmos, serão apresentadas algumas críticas
ao atual arranjo bancário.
O
arranjo da Basileia
O
total fracasso de Basileia I e principalmente de Basileia II em antecipar a
crise financeira de 2007 estimulou as autoridades a revisar e atualizar seu
arranjo de regras sobre a regulação do sistema bancário. Sob o título de
Basileia III, um arranjo revisado foi publicado às pressas. Há algumas
diferenças substanciais entre Basileia II e Basileia III. Embora muitas
das falhas anteriores tenham sido mantidas, trata-se de um passo na direção
correta, embora seja um passo muito pequeno. (A crítica a seguir está
longe de ser completa).
De
acordo com o Comitê de Supervisão Bancária da Basileia (CSBB), as propostas de
Basileia III têm dois principais objetivos: 1) fortalecer as regulamentações
globais sobre capital e liquidez com o objetivo de promover um setor bancário
mais resiliente; e 2) aprimorar a capacidade do setor bancário de absorver os
choques oriundos de tensões financeiras e econômicas.
Para
atingir estes objetivos, as principais propostas que o CSBB de Basileia III já
desenvolveu são: a) reforma dos requerimentos de capital (incluindo a
qualidade e a quantidade do capital), completa cobertura de risco, grau de
alavancagem; e b) alteração da liquidez do setor (razões de curto prazo e longo
prazo).
Requerimentos
de Capital e Ativos Ponderados pelo Risco (APR)
Em
termos de requerimento de capital, as principais alterações estão nas exigências
mais severas, tanto na qualidade quanto na quantidade. Com relação à
qualidade, as regras para a qualificação do capital são mais rigorosas.
Ações ordinárias e lucros obtidos passam a ser os componentes predominantes do Capital Tier 1 ao invés
de apenas os instrumentos de dívida.
Com
o intuito de preservar o núcleo do Tier 1, o Comitê introduziu dois novos
"colchões": o Colchão de Conservação de Capital tem o intuito de
fazer com que os bancos absorvam choques durante períodos de tensão sem que
saiam das especificações de capital do Tier 1, e um mais discricionário Colchão
Contracíclico de capital tem o objetivo de compensar o aumento nos riscos
sistêmicos em épocas de crescimento excessivo do crédito.
Em
termos de quantidade, o Capital Tier 1 total agora requerido passa a ser de 6%,
sendo que em Basileia II era apenas de 2% — em acréscimo aos
"colchões", que requerem 5% mais capital. Veja o gráfico.
(Colchão
Contracíclico em azul claro; Colchão de Conservação de Capital em rosa; Capital
Mínimo de Alta Qualidade em cinza)
Período de tempo para a implementação dos novos
requerimentos de capital
Adicionalmente,
um novo grau de alavancagem também fará parte do aparato regulatório do sistema
bancário. Os bancos serão obrigados a manter um grau de alavancagem de 3%
ou mais (33 vezes seu capital). Os ativos não ponderados incluem
provisões, empréstimos, itens não contabilizados nos balanços e que têm plena
conversão, e todos os derivativos. O principal objetivo desse grau de
alavancagem é justamente restringir a alavancagem no setor bancário, ao mesmo
tempo em que ajuda a proteger contra riscos de modelo (riscos envolvidos na
utilização de modelos matemáticos que precificam papeis financeiros) e erros de
mensuração.
É
certamente meritório implementar regras mais rígidas sobre requerimentos de
capital, mas isso ainda está longe de ser o bastante. Vale lembrar que,
no início da crise financeira, várias instituições financeiras estavam
adequadamente capitalizadas, isto é, mais do que compatível com Basileia.
Não obstante, elas sucumbiram em menos de um mês. Um exemplo emblemático
foi o de um famoso banco hipotecário no Reino Unido. Após a adoção de
Basel II pelo Reino Unido em 2007, dentre todos os grandes bancos, aquele que
mais rigorosamente seguia as determinações de requerimento de capital de
Basileia II era o Northern Rock. Apenas
alguns dias após anunciar sua intenção de retornar seu capital em excesso aos
seus acionistas, o banco simplesmente ficou sem dinheiro. Em mais de 150
anos, foi a primeira "corrida bancária" clássica ocorrida na Grã-Bretanha.
Definir
exatamente os requerimentos de capital é um trabalho em grande medida
arbitrário. Mais arbitrário ainda é a classificação de ativos de risco
sob as regras da Basileia. Na "abordagem padrão" (definida pelo
Comitê da Basileia), títulos da dívida pública classificados entre AAA e AA-
não requerem absolutamente nenhum capital, ao passo que A+ requer apenas
20%. Entidades do setor público também desfrutam de um status de grande
"segurança" sob Basileia.
Vejamos
a Itália, por exemplo. Um banco em posse de títulos italianos necessita
de apenas 2,1% de Capital Tier 1 (20% de ativos ponderados pelo risco vezes
10,5% do necessário requerimento de capital estipulado por Basileia).
Isso significa que uma mera redução contábil de 5% na dívida italiana (na forma
de calote) pode acabar com toda a base de capital de um banco. Não nos
esqueçamos de que a recente redução contábil proposta para a dívida grega foi
de 50%.
Em
dezembro de 2009, Grécia e Itália foram classificadas pela agência Fitch como
A- e A+, respectivamente. Isso significa que apenas 1,6% de Capital Tier
1 era requerido (20% de ativos ponderados pelo risco vezes 8% do requerimento
de capital estipulado por Basileia). Enquanto isso, títulos de Portugal,
Irlanda e Espanha não requeriam absolutamente nenhuma reserva de capital.
As
regras da Basileia geram um incentivo: acumular ativos de baixo risco e de
risco nulo, o que faz com que a base de capital de um banco seja alavancada ao
máximo. Basileia III ao menos limita a alavancagem máxima. Basileia
II não impunha tal limite. As securitizações foram um subproduto direto
desta regras de requerimento de capital. Várias hipotecas de risco foram
empacotadas conjuntamente dentro do mesmo conjunto de títulos para serem revendidas
no mercado secundário, e as agências de classificação de risco concederam AAA
para esse conjunto de ativos podres (como que hipotecas ruins, ao serem
empacotadas juntamente com centenas de outras hipotecas ruins, podem se
transformar em ativos de alta qualidade é algo que ainda assombra). Essa
prática permitiu que os bancos concessores de empréstimos hipotecários
retirassem ativos ruins de seus balancetes e, ao mesmo tempo, estimulava os
bancos de investimento a acumular esses títulos sem jamais ter de se preocupar
em manter uma quantidade suficiente de capital (pois eram AAA).
No
entanto, em vez de utilizarem classificações externas, os bancos também podiam
utilizar seus próprios parâmetros de risco para calcular seu capital, método
esse conhecido como abordagem baseada na classificação interna (ABCI).
Por esse método, os bancos puderam empregar sofisticados modelos financeiros
para determinar seu grau de exposição a vários riscos. Apesar do total
fracasso em utilizar complexos modelos de risco — os quais geraram a crise da
LTCM (Long Term Capital Management)
em 1998 —, os bancos estavam seguidamente determinando seu próprio requerimento
de capital por meio de tais ferramentas (modelagem de risco é um tópico
crucial, mas não será abordado em profundidade neste espaço).
Em
suma, a modelagem financeira é algo amplamente imperfeito e bastante
arbitrário. Vários tipos de risco são irreconhecíveis e, por definição,
não quantificáveis. Ademais, modelos de risco estão sujeitos a grandes
abusos e manipulações. O principal incentivo dos bancos ao utilizar seus
próprios modelos é subestimar os riscos de modo a permitir uma base de capital
mais alavancada (e, logo, mais lucrativa).
Embora
requerimentos de capital mais rígidos sejam de fato uma alteração bem-vinda, a
estimativa de quanto capital é prudente é algo que depende de julgamentos
arbitrários. Adicionalmente, a avaliação de ativos de risco é
completamente deficiente. Ambas as abordagens — a padrão e a ABCI — são
inerentemente falhas.
Por
fim, os requerimentos de capital da Basileia são amplamente enviesados em prol
da dívida governamental. No Acordo da Basileia original (1988), as
dívidas de todos os governos da OCDE receberam risco zero. E isso
permaneceu praticamente inalterado desde então. Deveriam os reguladores
se surpreender com o fato de que a maior ameaça para o sistema bancário europeu
no momento seja exatamente a dívida soberana?
Índice
de Liquidez
Basileia
II centrou-se amplamente nos ativos dos balancetes dos bancos e negligenciou a
liquidez e a estrutura dos passivos do sistema bancário. Os novos Índices
de Liquidez introduzidos por Basileia III tentam adereçar esta grave
inconsistência.
Além
do capital que os bancos devem ter como reserva para ativos ponderados pelo
risco, as instituições financeiras hoje têm mais dois novos requerimentos para
cumprir: Relação de Cobertura de Liquidez (RCL) e Relação Líquida de
Financiamento Estável (RLFE). A RCL foi criado para promover a
resiliência de curto prazo do risco de liquidez de um banco, garantindo que ele
possua uma quantidade suficiente de ativos altamente líquidos para sobreviver a
um significativo cenário de tensão que dure 30 dias completos. E a RLFE
tem o objetivo de promover a resiliência de longo prazo ao exigir que os bancos
possuam capital ou financiamento de longo prazo de alta qualidade para poderem
sobreviver por um período de um ano de tensão um pouco menos severa.
Por
mais louvável que seja esta regulação, ela se baseia em fundamentos
questionáveis. A RCL tem o objetivo de garantir que um banco possua uma
quantidade suficiente de ativos líquidos desimpedidos e de alta qualidade que o
permitam sobreviver (isto é, que o permitam satisfazer as crescentes exigências
de restituição de dinheiro) durante um curto período (30 dias completos) de
tensão bastante severa. Isto, portanto, requer que um banco especule
quais serão o fluxo de saída e o fluxo de entrada de dinheiro ao qual ele estará
sujeito durante este período. Considerando-se que é provável que eles
sofram um aumento das exigências e uma diminuição dos recursos disponíveis, os
bancos deveriam manter um colchão de ativos líquidos de alta qualidade em valor
igual ou maior do que seu esperado fluxo líquido total de saída de
dinheiro. Os bancos serão obrigados a satisfazer A RCL a todo o momento.
A
RCL supostamente possui uma função similar àquela dos compulsórios (definidos
pelos bancos centrais). Os compulsórios definem quanto de dinheiro em
espécie (ou de dinheiro eletrônico na forma de reservas depositadas no banco
central, conversíveis em dinheiro a qualquer momento) os bancos devem ter para
lastrear seus depósitos em conta-corrente. A RCL é exatamente a mesma
coisa, com o acréscimo de que ativos de alta qualidade também se qualificam
para satisfazer o regulador. Os compulsórios no atual sistema bancário
são menores do que 10% na maioria dos países, chegando até mesmo a 0% em alguns
casos extremos (Austrália, Canadá e Nova Zelândia).
Duas
críticas devem ser feitas: o arranjo de ativos de alta qualidade e o método de
se estimar um "curto período de tensão bastante severa". Não é
difícil adivinhar qual classe de ativos vai mais uma vez receber a imerecida
classificação de alta qualidade. Sim, naturalmente, as dívidas
soberanas. Não querendo soar repetitivo, deixemos aos mercados de capital
decidir quão boas elas são.
Quanto
à segunda crítica: como podem os bancos estimar o que constitui um período de
tensão severa? De acordo com o CSBB, as instituições financeiras devem
calcular seu esperado fluxo líquido total de saída de dinheiro durante um
cenário de 30 dias de tensão. Com relação à saída de dinheiro, ela é
"calculada multiplicando os saldos pendentes de várias categorias ou tipos
de passivo e itens não contabilizados nos balanços por taxas esperadas
de saques" (ênfase minha).
O
eterno dilema do sistema bancário jaz exatamente no fato de que estas taxas não
são quantificáveis. A RCL da Basileia baseia-se no mesmo princípio utilizado
para respaldar o valor percentual do compulsório: a "lei dos grandes
números". Ou seja, para satisfazer as normais exigências de liquidez
de seus clientes, os bancos precisam ter em mãos, na forma de dinheiro, apenas
uma fração do dinheiro total que foi neles depositado. No caso da RCL,
para aguentar 30 dias de tensões severas, é necessário ter em mãos dinheiro e
mais alguns outros ativos altamente líquidos.
No
entanto, pelo simples fato de que o fenômeno bancário recai dentro do âmbito da
ação humana, os riscos de retiradas de depósitos não são nem quantificáveis e
nem seguráveis. A ação humana está sempre sujeita a uma permanente
incerteza. Consequentemente, não se trata de um risco segurável (ou
mensurável). Ao longo da história, os bancos nunca se mostraram capazes
de permanece solventes ao mantendo como reservas apenas uma fração de seus
depósitos. A RCL da Basileia irá impor um colchão mais grosso contra esta
incerteza, é fato. Mas não será capaz de evitá-la indefinidamente.
Não nos esqueçamos de que uma corrida bancária necessita de muito menos de que
30 dias para derrubar uma instituição financeira.
A
Relação Líquida de Financiamento Estável (RLFE) é similar às regras de
requerimento de capital, embora um pouco mais rígida. Ela ataca as dificuldades
geradas pela maturação descompassada obrigando os bancos a financiar
determinadas classes de ativos com passivos de prazo mais longo (Capital Tier 1
e 2 incluídos). Evidentemente, a dívida soberana está entre a classe de
ativos da alta qualidade. No final, a RLFE claramente representará um
empecilho adicional ao crescimento dos balancetes.
Como
um todo, Basileia III representa um aprimoramento sobre seu fracassado
antecessor. Os requerimentos de capital foram elevados. E o Comitê
finalmente reconheceu que a iliquidez pode rapidamente se transformar em
insolvência. Infelizmente, suas arbitrárias ponderações de risco se
mantêm praticamente inalteradas desde 1988, concedendo a determinadas classes
de ativos uma classificação de baixo risco (no mínimo) questionável.
Talvez a mais desapontadora peculiaridade seja seu longo cronograma de
implementação. Propostas essenciais foram postergadas para anos mais à
frente e a conformidade completa às novas regras ficou apenas para 2019.
Algo que me diz que os bancos não têm todo esse tempo.
A
lucratividade dos bancos (retorno sobre o patrimônio) sofrerá um bom impacto,
tudo o mais o constante. Mas é difícil prever como os bancos irão reagir
para compensar esta perda de renda. E há também os fardos burocráticos:
relatórios, divulgações, transparências e aquiescência às regras de Basileia
III certamente irão afetar o resultado financeiro dos bancos.
No
final, o arranjo da Basileia é como um motorista indo em direção a um penhasco
a 145 km/h e que repentinamente reduz para 95 km/h, ao mesmo tempo em que
decide parar de fumar. Isso certamente irá reduzir seus riscos. Sua
vida pode até se prolongar. Mas o resultado final não será alterado.
Reformas
verdadeiras
Portanto,
como podemos aperfeiçoar o pior sistema bancário que já houve? Como
podemos garantir que os bancos internalizem os custos de suas maturações?
A
primeira reforma a ser proposta já foi na realidade apresentada por dois
membros do Parlamento britânico, Steven Baker e Douglas Carswell, por meio de
um projeto de lei que proibiria os bancos e as sociedades de crédito
imobiliário de emprestar dinheiro depositado em contas-correntes sem a
permissão do respectivo correntista.
Seu
propósito é distinguir os depósitos destinados à custódia dos depósitos
destinados a serem emprestados por instituições financeiras. Um projeto
de lei simples e direto, que exigiria que os bancos especificassem no momento
do depósito se o desejo do correntista é unicamente pedir que o banco guarde
seu dinheiro ou se, ao contrário, ele autoriza o banco a emprestar seu dinheiro
para terceiros. Essa simples mudança na legislação teria um enorme
impacto, uma vez que ela iria organizar a confusão e impedir que os bancos
emprestassem dinheiro de correntistas que jamais intencionaram destinar seus
fundos a empréstimos. Emprestadores seriam recompensados com um pagamento
de juros, por satisfazerem as necessidades de financiamento de um tomador de
empréstimos; e os correntistas não mais se tornariam emprestadores involuntária
e compulsoriamente, da noite para o dia.
Sim,
correntistas que desejassem um serviço de custódia provavelmente teriam de
pagar por ele. No final, tudo vai depender do contrato entre o
correntista e o banco; a única desde que o contrato seja claro
exequível. Esta iniciativa iria diminuir enormemente os riscos de
maturação descompassada que os bancos acentuadamente praticam no presente, o
que iria reduzir as ameaças de crises de liquidez.
Consequentemente,
o sistema bancário de reservas fracionárias (SBRF) teria de ser reavaliado, o
que nos leva à segunda proposta. A capacidade de criar depósitos por meio
da expansão creditícia ex nihilo coloca todo o sistema
bancário sob um enorme risco sistêmico. Primeiramente, há o argumento
legal, que considera ser uma fraude os bancos criarem múltiplos direitos de
reivindicação sobre o mesmo dinheiro originalmente depositado por um único
correntista (um argumento que este autor endossa). Em segundo lugar, ao
expandir o crédito independentemente de ter havido uma prévia formação de
poupança, o SBRF gerará investimentos insustentáveis em diversas áreas, os
quais mais cedo ou mais tarde terão de ser liquidados, exatamente por não haver
recursos que deveriam ter sido previamente poupados. Um típico exemplo de
um ciclo econômico.
Reduzir
a maturação descompassada a um mínimo e abolir o SBRF iria aperfeiçoar
amplamente a solidez do sistema bancário. Certamente o deixaria menos
propenso a quebras sistêmicas. Sob esse cenário, um banco central seria
irrelevante, uma vez que sua principal função — prover liquidez — tornar-se-ia
virtualmente desnecessária.
A
terceira e última proposta possivelmente irá fazer com que as duas primeiras se
tornem redundantes: a adoção de um free banking (sistema
bancário livre, sem regulamentações, sem barreiras à entrada e sem moeda de
curso forçado). O free banking acarretaria a liberdade
de se ser bem sucedido e, ainda mais importante, a liberdade de ir à falência;
uma restauração dos incentivos adequados e uma abolição do sistema
regulatório. Acima de tudo, uma completa retirada do estado do sistema
financeiro. Isso significaria o fim do banco central. Também
significaria o fim de todos os seguros governamentais dos depósitos. E,
obviamente, nenhum tipo de pacote de socorro.
Internalizar
os custos do sistema financeiro é algo central para restaurar a confiança no
setor bancário. Instituições deveriam ser livres para colher os altos (e
arriscados) lucros oriundos da prática de tomar emprestado a curto prazo e
emprestar a longo prazo. Mas elas não deveriam poder socializar seus
prejuízos para o restante da sociedade quando esses investimentos dessem
errado. Os bancos devem ser totalmente responsáveis por suas decisões.
Esse
conjunto de reformas iria atacar várias questões que ameaçam o atual sistema
bancário, como os derivativos. Amplamente reconhecidos como "armas
de destruição em massa", a verdade é que eles só podem ser assim
considerados em um cenário de garantia implícita de socorro. A realidade
é que o banco central foi criado não para impedir que os bancos assumissem
riscos excessivos, mas sim para impedir que eles quebrassem como consequência
desta assunção de riscos excessivos. Jaz aí um de seus principais
defeitos.
Seria
preferível a adoção de todas as três propostas acima. Nesta ordem.
E então poderíamos finalmente ter um free banking sujeito aos
tradicionais princípios legais. Um conceito tão simples e, no entanto,
tão revolucionário em tempos modernos. Tem funcionado para todas as
outras indústrias. Não há razão para crer que ela não funcionaria para os
bancos.
Conclusão
Para
utilizar outra frase de Sir Mervyn King, "esta é a pior crise financeira
que já vivenciamos pelo menos desde a Grande Depressão, se não da
história". Não há dúvidas a respeito. E suas causas
fundamentais estão intimamente ligadas à maneira como o sistema bancário é
organizado.
Abolir
o sistema bancário de reservas fracionárias e deixar claro quando os depósitos
serão mantidos sob custódia é uma medida que irá aprimorar a solidez dos
bancos. No entanto, essas duas reformas podem fracassar se um emprestador
de última instância continuar em operação, uma vez que os bancos encontrariam
maneiras inovadoras de contornar essas restrições.
É
válido lembrar que, dada a presença de uma implícita garantia de socorro, as
regulamentações simplesmente se tornam o principal obstáculo no caminho dos
bancos. O incentivo do setor passa a ser o de contorná-las de modo a
obter os maiores lucros possíveis. Derivativos, exposições não
contabilizadas nos balanços e tudo o mais que esteja fora do escopo das
regulamentações se tornam válidos. Perigosas inovações financeiras são o
subproduto de regulamentações bancárias combinadas com uma implícita garantia
de socorro. O regulador sempre estará vários passos atrás.
A
atual estrutura do sistema bancário estimula uma excessiva assunção de risco,
embora desconsidere as consequências de tal postura. Regulamentações
bancárias (inclusive Basileia) induzem instituições financeiras a operarem no
limite. Aquiescer a regras mínimas, aceitar riscos máximos, e confiar em
pacotes de socorro do banco central são atitudes que jamais podem infundir
prudência à prática bancária. Porém, o temor de falência certamente pode
alterar o comportamento.
Um
sistema financeiro sólido não pode se basear somente na confiança ou na ideia
de que a maioria dos correntistas não irá exigir a restituição de seu dinheiro
depositado. Retornar a um sistema bancário sólido significa estender aos
bancos as mesmas regras e incentivos que se aplicam a todo o resto da
economia. Nada de privilégios. Nada de subsídios. Bancos
prudentes e capazes irão prosperar. Os imprudentes e fraudulentos irão
perecer. E toda a economia irá se desenvolver sobre bases mais sólidas.
Fernando Ulrich formado
em administração de empresas pela PUC-RS, concluiu em julho de 2010 o programa
de mestrado em economia austríaca comandado por Jesús Huerta de Soto em Madri,
Espanha. Atualmente trabalha no mercado financeiro. Mande-lhe um e-mail.
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