Mediante argumento estapafúrdio – “primazia do interesse coletivo” – exame de ordem permanece.
Por Klauber Cristofen
Pires
O que
significa a expressão “interesse coletivo” (ou “público”)? Este conceito, que
tem sido empurrado a seco goela abaixo dos cidadãos e em especial dos
estudantes de ciências sociais e humanas nas últimas décadas, é um dos pilares
centrais da ascensão da doutrina estatista-positivista no Brasil.
À primeira
vista, qualquer desavisado nele enxerga as vestes de um postulado, isto é, de
uma verdade auto-evidente. Entretanto, para atestarmos a sua inveracidade,
basta constatarmos que tal gatilho mental é sempre proferido por uma só boca e
sempre à revelia da vontade expressa ou da consulta prévia de todos os cidadãos
que pertencem à alegada coletividade. Disto resulta que quando alguém recorre à
autoridade de tal fórmula, incorre em usurpação dos interesses individuais. Não
seria exagero acusá-lo de estelionato.
A escola
que legitima a tese da supremacia do interesse público sobre o particular é a
do utilitarismo socialista, segundo a qual a baliza do conceito de justiça é a
maximização do bem estar a um número majoritário de pessoas. Todavia, aí mesmo
morrem por asfixia não somente o senso natural de justiça (atribuir a alguém o
direito que lhe pertence) como também o conceito de segurança jurídica (o de um
indivíduo conhecer previamente seu direito para poder defendê-lo).
Sob a
ótica da prevalência do interesse coletivo nenhum chão firme há de existir,
porque a cada ação agressiva contra a propriedade alheia há de ser averiguada a
sua conformidade com os supostos resultados esperados para a aferição de sua
validade. Exemplifiquemos: um assalto cujo botim seja repartido entre os
participantes de uma quadrilha efetivamente proporciona uma melhoria do bem
estar a um maior número de pessoas do que se estivesse mantido na carteira de
um único cidadão, no caso, a vítima.
Este
exemplo pode parecer ao leitor como um exagero incabível, mas nos EUA a Suprema Corte permitiu aos
governos locais desapropriar moradias e fazendas em favor de projetos de
desenvolvimento privados.
No Brasil, as invasões de terras pelo MST usualmente dão ensejo à imputação de
culpabilidade ao dono, que passa a ser obrigado a provar que sua propriedade
atende à “função social”. Na Venezuela, até mesmo roubos de automóveis são
comumente chancelados pelas autoridades, especialmente se forem praticados
pelas milícias bolivarianas.
Expus este
prólogo bem explicativo porque no dia 26 de outubro de 2011 foi justamente com
a tese da supremacia do “interesse coletivo” que o STF, espelhando uma
jurisprudência que já vem firmando uma sólida tradição na erraticidade, decidiu
pela legalidade do exame de ordem como requisito para o exercício da advocacia:
“Tem que separar o interesse individual do interesse
coletivo. O advogado exerce função pública, e quando não tem capacitação,
coloca em risco a paz social”, disse o Ministro Marco Aurélio Mello ao deixar o plenário do STF.
Convém
recordar que ainda recentemente o mesmo STF extinguiu até mesmo a exigência do
diploma de bacharel como condição para o exercício da profissão de jornalista,
bem como também a obrigatoriedade de inscrição na bizarra Ordem dos Músicos do
Brasil, conjuntamente com a compulsoriedade da cobrança de suas taxas e
anuidades. Como dito, já no caso dos advogados – e também dos juízes – estes
foram unânimes em afirmar o “interesse coletivo” como uma valiosa exceção.
Quanto a
este vício de supervalorização de um ofício perante outros, o filósofo e
economista Ludwig von Mises já criticava a tradição burocrata-militarista
prussiana segundo a qual os funcionários públicos gozavam de um status social
mais elevado do que as pessoas que produziam bens e serviços. Em Liberalism
in the Classical Tradition (p. 39-40) [i], aduziu:
Até bem
recentemente, os servidores públicos na Alemanha gozavam e certamente ainda
hoje desfrutam do prestígio de uma carreira do mais alto respeito em relação à
de um trabalhador civil. A estima social atribuída a um jovem assessor ou
tenente[ii] excedia em
muito a de um empresário ou de um advogado experientes e com longos anos de trabalho
honesto. (…) Não há uma base racional para tal sobrevalorização das atividades
executadas nos escritórios das autoridades administrativas (…). Não há nada em
si mesmo de mais honrado, elegante ou nobre despender um dia em uma repartição
pública preenchendo documentos do que, por exemplo, trabalhar na sala de
projetos de uma fábrica.
Prossigamos
com nossa análise sobre o depoimento do Ministro Marco Aurélio Mello, que também declarou não ver problema na realização da prova no
formato que é feito hoje: “Hoje se tem o exame feito, não pela Ordem em si, mas
por essa instituição [Fundação Getulio Vargas] acima de qualquer suspeita”,
completou Marco Aurélio, referindo-se à fundação.
Não vou
contestar a laureada reputação da Fundação Getúlio Vargas, embora nos dias
atuais por tal atitude reste-me o risco de queimar as mãos. No entanto, sobre o
que o digníssimo magistrado arguiu provavelmente guarda relação com um possível
ato de corrupção com a finalidade de facilitar a aprovação de um ou de mais
indivíduos em função de uma relação de apadrinhamento.
Porém, nem
de longe é este o principal problema que o exame de ordem é passível de causar;
além do flagrante e injustificado duplo ato administrativo para um mesmo fim (“bis in idem”), há ainda outros dois
deveras preocupantes: a reserva protecionista do mercado e o filtro ideológico.
Entenderam
em uníssono os excelentíssimos que o bacharel incapaz há de botar em risco a paz social, conforme
declaração já transcrita acima. Não entendo e parece que também não foi
explicado como isto pode acontecer. Será por causa de petições esdrúxulas? Será
por causa de peças de defesa ineptas[iii]? Ora, uma
petição mal feita pode ser simplesmente indeferida, e no caso de lides, para
cada causa ganha haverá sempre outra oposta que resta perdida. Então, qual o
grande risco para a paz social?
Agora,
peço aos nobilíssimos a máxima vênia: onde haveremos de encontrar muito maior
risco para a paz social? No trabalho deste ou daquele advogado incompetente,
cuja reputação há de afastá-lo naturalmente do mercado, ou no risco de o exame
de ordem - abusando de seu poder monopolista
– promover uma perigosa seleção ideológica dos candidatos? Aqui alerto que se
trata de um perigo latente, que deve antes de tudo ser considerado aprioristicamente,
mas que já podemos constatar sinais visíveis de sua existência.
Da mesma
forma, temos uma entidade formada por advogados, sendo que são os mesmos que
detém o poder de crivar quantos mais poderão entrar no mercado. Que interesse
terão eles em aceitar a participação de novatos no mercado? Vamos refletir com
base em paralelos: que tal um conselho formado por supermercadistas com o poder
de admitir, a seu exclusivo juízo, novos concorrentes na praça? Então, não
temos aí um perigoso precedente contra a paz social? Será isto menos importante
do que o fulano perder o prazo para interpor o recurso?
Só para
recordarmos, neste ano de 2011 foram aprovados apenas 4% dos bacharéis. Assim
sendo, ou temos um gravíssimo escândalo no sistema de ensino, posto que 96% dos
formados são considerados incapazes, ou temos um flagrante de desvio de
finalidade no exame de ordem, levado ao extremo não para aprovar qualitativamente
mediante critérios mínimos aceitáveis, mas sim para obstar no máximo possível a
entrada de novos concorrentes.
Vamos agora
a um pequeno raciocínio lógico: quem são os especialistas da fundação Getúlio
Vargas que elaboram as provas? Ora, se não são advogados, então estamos em uma
situação em que não-advogados elaboram provas de exame de ordem para que
bacharéis em Direito possam se tornar advogados, o que nos leva a um estrondoso
absurdo. Absurdo? Mas, e se forem advogados, digo, advogados aprovados pela
OAB? Oras, então estamos diante do mesmíssimo problema, ainda não resolvido: ainda
são os sócios da Guilda os que ditam as regras.
Mises
também nos ensina sobre o que denominou de “socialismo das guildas”. O trecho
abaixo transcrito, extraído de sua mais famosa obra, Ação Humana (p. 1115-1117)
é um pouco longo e de certa forma desrespeita um pouco as normas usuais para
citações. Todavia, pelo seu alto valor informativo, apresento-o sem cortes:
Ao
elaborar o seu projeto, os socialistas de guildas tinham em mente as condições
de funcionamento dos governos locais ingleses e as relações entre as várias
autoridades locais e o governo central da Inglaterra. Seu objetivo era
estabelecer a autogestão de cada setor da indústria; pretendiam instaurar,
segundo palavras dos Webbs, “o direito de autodeterminação de cada profissão”. Da
mesma maneira que cada municipalidade se ocupa dos assuntos da comunidade local
e o governo nacional se encarrega dos assuntos que dizem respeito à nação, a
guilda, e apenas ela, deveria ter jurisdição sobre seus assuntos internos,
ficando a intervenção do governo adstrita àqueles casos que as próprias guildas
não pudessem resolver.
Entretanto,
num sistema de cooperação social com base na divisão do trabalho, nada há que
se identifique com o interesse exclusivo dos membros de algum estabelecimento, companhia
ou setor industrial, e que não seja também de interesse dos demais membros da coletividade.
Não existem questões internas de qualquer guilda ou corparazione cujas soluções não afetem a toda a nação. Um setor da
atividade econômica não está a serviço apenas daqueles que nele trabalham; está
a serviço de todos. Se, num setor da atividade econômica, houver ineficiência,
desperdício dos fatores escassos de produção ou relutância em se adotarem os
métodos de produção mais adequados, todos saem prejudicados. Não se pode deixar
que os membros da guilda decidam sobre o método tecnológico a ser adotado, sobre
a quantidade e qualidade dos produtos, sobre a jornada de trabalho e mil coisas
mais, porque essas decisões afetam a toda a comunidade. Na economia de mercado,
o empresário, ao tomar essas decisões, está incondicionalmente sujeito às leis
do mercado; na realidade, são os consumidores que tomam as decisões. Se o
empresário tentar desobedecê-los, sofrerá perdas e logo perderá sua posição
empresarial. Por outro lado, as guildas monopolísticas não precisam temer a
competição; gozam do direito inalienável de exclusividade no seu setor de produção.
De servidores do consumidor transformam-se em senhores. Ficam livres para recorrer
a práticas que favorecem seus membros às custas do resto da população.
Pouco
importa que a guilda seja comandada exclusivamente por trabalhadores ou que os
capitalistas e antigos empresários, em alguma medida, ainda participem de sua
direção. Carece também de importância o fato de os representantes dos consumidores
disporem ou não de assentos no conselho diretor da guilda. O que importa é que
a guilda, se autônoma, não estará sujeita à pressão que a forçaria a ajustar
seu funcionamento de modo a atender os consumidores da melhor maneira possível;
terá liberdade para dar precedência aos interesses de seus membros sobre os
interesses dos consumidores. O esquema do socialismo de guildas e do corporativismo,
não leva em consideração o fato de que o único propósito da produção é o
consumo. Há uma inversão total de
valores; a produção torna-se um fim em si mesmo.
Até aqui
vimos os problemas causados por um tipo especial de conselho de classe: a OAB,
potencialmente – se já não o é de fato – corporativista e ideologicamente
engajada. Então, a pergunta que naturalmente exsurge é: que solução poderia ser
mais viável?
Allain
Peyrefitte nos conta que na França monárquica as guildas e as corporações de
ofício mantinham os códigos e manuais mais exigentes para a produção de tecidos
e estampas – em termos de qualidade, não havia concorrentes à altura no mundo
conhecido. Porém, ano após ano, a França perdia mercado para os países baixos e
para as Hansas, porque lá eram fabricados produtos concorrentes de qualidade um
pouco inferior por preços mais acessíveis, que eram muito bem apreciados para
usos menos nobres.
Portanto,
a primeira resposta está em que nem todos os advogados precisam ser magníficos juristas.
Na verdade, a maior parte se ocupará de procedimentos razoavelmente simples, do
tipo “receita de bolo”.
Deixemos o
mercado livre e ao invés de mantermos uma entidade representativa de classe na
forma de uma autarquia estatal, poderemos vislumbrar a ascensão natural de não
somente uma OAB, mas de várias delas, isto é, na forma de associações puramente
privadas, cada qual com sua filosofia e reputação. Com o tempo, será muito
fácil a um cidadão identificar que tipo de advogado deseja: se aquele que
pertence a uma conceituadíssima associação, para resolver um caso muito
complexo, ou de uma associação mais simples, cujos integrantes sejam
profissionais mais acessíveis, para resolver problemas mais cotidianos.
Estas
associações poderão estipular todas as exigências que lhe vierem à telha, desde
que todo bacharel terá o poder de escolha de optar pela qual mais se interessa,
ou mesmo não se alinhar a nenhuma delas, preferindo construir seu nome por si
próprio.
O modelo
que retrato acima não é utópico: funciona de forma excelente no meio da
engenharia: são as chamadas “sociedades classificadoras”, entidades totalmente
privadas de certificação que começaram registrando e editando normas para a
construção de embarcações mercantes e que hoje atuam também no segmento
ferroviário, rodoviário, aeronáutico e de grandes obras. A mais antiga é o Lloyd
Register, fundado em 1760 na Inglaterra e que funciona até hoje.
Quando um
empresário, digamos, um armador, adere a uma sociedade classificadora, ele se
submete a ela voluntariamente, devendo construir seus navios conforme as especificações
técnicas por ela estabelecidas. Pode parecer estranho, mas a reputação que goza
a sociedade classificadora garante segurança aos contratadores de fretes e
fornecedores, bem como prêmios mais baratos nas seguradoras e acesso facilitado
aos portos das economias mais pujantes. Todo o sistema funciona em bases voluntárias
e contratuais, nos quais a reputação e a confiança são os maiores ativos.
Este
modelo poderia ser reproduzido no Brasil tendo somente vantagens a auferirmos.
É uma questão de mudança de cultura. Já estamos fartos deste amálgama de modelos
socialistas falidos.
[i] - Up to very recently public officials in Germany
enjoyed, and indeed still enjoy even today, a prestige that has made the most
highly respected career that of a civil servant. The social esteem in which a
young "assessor" ∗or lieutenant is
held far exceeds that of a businessman or an attorney grown old in honest
labor. (...) There is no rational basis for this overestimation of the
activities carried on in the offices of the administrative authorities. (…) In
itself it is no finer, nobler, or more honorable to spend one's days in a
government office filling out documents than, for example, to work in the
blueprint room of a machine factory.
[ii]- Na Alemanha, a
administração pública tinha uma estrutura militarizada, de modo que os
“tenentes” seriam hoje comparáveis aos funcionários públicos concursados de
nível superior em início de carreira.
[iii] - Uma peça de defesa considerada inepta é aquela que não ataca adequadamente
os motivos apresentados pela acusação. Ex.: um sujeito acusado de roubo alega em
seu favor que é pessoa de ilibada reputação, ao invés de procurar desqualificar
ou justificar as provas que contra ele pesam.
Otima publicação!. Sou um bacharel em Direito desprovido das qualidades da guilda como mesmo disse o Ministro "MARCUS AURELIUS".Mesmo com Doutorado marcado no exterior. Abraços!
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