“A proposta das esquerdas brasileiras é comer a semente destinada ao plantio”. (Oscar Lorenzo-Fernandez)
*Roberto de
Oliveira Campos
De um simples dispositivo
de espoliação econômico-feudal, burguesa ou industrial, o capitalismo evoluiu
para se transformar num sistema trinitário, com três vetores distintos em
tensão criadora pontilhada de avanços e retrocessos: o aspecto econômico, o
político e o cultural. O socialismo marxista ao invés, partindo de uma ampla
análise social, tornou-se um sistema monístico, em que esses diferentes valores
se unificam e confundem, em rigidez pragmática. O socialismo, que nascera como
ciência, virou religião. O capitalismo, que parecia, simples obsessão
econômica, absorveu valores de credo liberal, e se revelou politicamente mais
flexível e culturalmente mais diversificado.
Nenhum dos dois sistemas
hoje existe, obviamente, em sua forma pura, o que torna os termos “capitalismo”
e “socialismo” simplificações duvidosas. Mas não se deve exagerar a
convergência dos dois sistemas. As “economias de mercado” são perfeitamente
diferenciáveis das “economias de comando”, ainda que as primeiras tenham
absorvido graus intensos de intervenção governamentais e as segundas comecem a
admitir os sinais do mercado no tocante a preços incentivos. Isso é
dramaticamente perceptível nas zonas de confrontação: Alemanha Ocidental versus
Alemanha Oriental, Coréia do Norte versus Coréia do Sul, China Continental
versus Taiwan, e assim por diante.
À busca de raízes éticas
Se o capitalismo, ou
melhor, as “economias de mercado”, têm sobrevivido às “crises” profetizadas por
Marx, assim como às “contradições culturais” denunciadas por Daniel Bell, resta
saber a que necessidade básica correspondem. Para Hayek, a explicação é
simples. Reside em ser o único sistema compatível com a liberdade do indivíduo.
E a liberdade, definível como a “ausência de constrangimento”, é mais
fundamental que a justiça, pois que esta depende de uma impraticável avaliação
de mérito. Uma sociedade livre pode ser justa, enquanto uma sociedade não-livre
nunca é justa, pois nega ao individuo oportunidade de auto-realização.
Poucos têm hoje a coragem
libertária de Hayek e preferem assim outras justificativas para o “ethos
capitalista”, em face da crueldade do mercado. Irving Kristol, por exemplo,
lembra, sem endossá-las, três explicações tradicionais:
- A ética protestante, ou
seja, o conceito weberiano de que o sucesso econômico se justifica em função do
exercício de virtudes pessoais, como a inteligência, a sobriedade, a ambição
honesta. (Esqueçamos, por inoportuno discuti-las, as teorias antiweberianas de
que o capitalismo comercial nasceu nas cidades italianas, e a organização do
trabalho horário nos mosteiros medievais, antecedendo assim a ética
calvinista).
Nenhuma dessas explicações
chega a constituir uma teologia moralmente tranqüilizadora, comprável ao fervor
dogmático do socialismo.
O fato é que, seja pelas
crueldades do mercado – onde fatores acidentais, como a herança, ou
imperfeições políticas, como a discriminação racial, criam desigualdades
chocantes – seja pelo contágio de pregação socialista (que melhora a igualdade
mas retarda a eliminação da pobreza), o capitalismo moderno desenvolveu sua
própria Angst, uma espécie de complexo de culpa. Exemplos desse complexo de
culpa são a reação contra o “comunismo” e a “depredação ecológica“.
Isso revela no sistema
capitalista ao mesmo tempo debilidade ideológica (que o torna menos
exportável), e a flexibilidade pragmática (que o torna mais durável). Donde
poder-se falar hoje nas “economias de mercado corrigido”, nas quais o mercado
sofre intervenções que refletem as contínuas tensões resultantes que se poderia
chamar o “triplica compromisso” entre riqueza individual, equidade social e
liberdade política. O mercado privado seria o criador de riqueza, o governo, o
promotor de equidade, e o sistema democrático, o preservador da liberdade. A
sucessão de fases intervencionistas e libertárias na Europa Ocidental, assim
como nos Estados Unidos, caracterizadas pela alternância de partidos
sociais-democráticos ou conservadores, conforme predominam preocupações
produtivistas ou distributivistas, denotam as cambiantes predominâncias dos
elementos constitutivos do tríplice compromisso.
A superposição de crises
- a controvérsia entre
gradualismo e tratamento de choque;
- o debate entre
monetarismo e keynesianismo;
- as novas teorias de
“administração da oferta” (supply side economics); e
- a ressurreição dos
ciclos de longo prazo (a teoria da “onda larga” de Kondratieff, economista
russo da década dos vinte).
A controvérsia do
gradualismo versus tratamento de choque tornou-se cada vez menos interessante.
O bom senso indica que o tratamento de choque só não transpõe o limite de
tolerância política se a inflação é moderada, e se as expectativas não se
tornaram cronicamente viciadas, de modo a permitir que o trauma recessivo seja
curto. Caso contrário, as sociedades estão condenadas ao gradualismo. O que é
importante, como nota o Professor William Fellner, é que seja um “gradualismo a
velocidade perceptível”, isto é, suficiente para modificar as
expectativas.
A reativação da
controvérsia entre monetarismo e keynesianismo foi conseqüência direta da
estagflação. Por longo tempo no pós-guerra o Keynesianismo ganhou foros de ortodoxia,
principalmente no mundo anglo-saxão (no continente europeu a escola austríaca
manteve a tradição monetarista). A renitência da inflação e a incapacidade do
keynesianismo de debelá-la provocaram uma ressurreição neomonetarista, com
experimentos monetaristas ensaiados na Inglaterra e Estados Unidos, encorajados
pela evidência de que os países mais bem-sucedidos na luta contra a inflação –
Suíça, Alemanha e Japão - foram os que menos se haviam exposto à contaminação
keynesiana.
A nouvelle vague nos
Estados Unidos é a administração da oferta – “supply side economics”. A ênfase
sobre a oferta é válida se interpretada como complemento e não como
substitutivo da “administração da procura”. A “supply side economics” é,
entretanto mais que simples metodologia. Aspira a ser uma filosofia de
reabilitação do ethos capitalista, pela liberação das energias do produtor,
restauração de incentivos à poupança e produtividade, estímulo à concorrência,
redução de interferência governamental, seja assistencial, seja regulatória.
(Os exageros da mania ecológica – a “economia” – nos Estados Unidos encareceram
e retardaram investimentos).
A intratabilidade da atual
fase de estagflação ressuscitou velhas teorias sobre ciclos econômicos, que a
contínua prosperidade do pós-guerra parecia haver arquivado. Segundo o
Professor Walter Rostow, a explosão dos preços de trigo, petróleo e outras
matérias-primas em 1972/1973 prenuncia o advento de uma nova onda larga da
conjuntura, o quinto ciclo Kondratieff, marcado pela relativa escassez de
matérias-primas, especialmente energia. Como é sabido, o economista russo
Kondratieff (que segundo Soljenitzn teria morrido num gulag) escrevendo na
década de 20, identificara no exame de sérias estatísticas, relativas à
Grão-Bretanha, França e Estados Unidos, a existência de ciclos ascendentes e
descendentes de produção e preços num espaço de 40 e 50 anos entre 1790 e 1920.
Na extrapolação de Rostow,
a Grande Depressão dos anos trinta marcaria a fase descendente do terceiro
Kondratieff, enquanto o período recente (1972/79) marcaria o começo do ramo
ascendente do quinto Kondrafieff. Nessa visão, as crises não seriam o canto de
cisne do capitalismo e sim episódios de uma evidência evolutiva. É interessante
anotar os pontos de convergência entre uma interpretação à la Kondratieff e a
presente busca de uma teoria de “administração de oferta”. Pois se estamos no
limiar de um novo Ciclo Kondratieff, caracterizado pela relativa escassez de
produção primária e energia, a política adequada não deveria ser
macroeconômica, nem no sentido monetarista de simples administração de procura
nem no sentido keynesiano de estímulo global a investimentos, senão que
direcionada seletivamente para o aumento da oferta setorial de matérias-primas
e energias alternativas. A reorientação seletiva de investimentos, no sentido
do rompimento de gargalos, representaria uma conciliação entre a necessidade
antiinflacionária de conter a demanda global e a necessidade anti-recessiva de
estimular a oferta.
Mas se o capitalismo hodierno
superpõe às perplexidades da estagflação uma desorientação conceitual, o
panorama não é nada melhor no campo socialista. O marxismo deixou de ser
ciência para transformar-se em dogma. Sua eficiência ficou limitada à quebra de
moldes feudais em sociedades primitivas. É uma técnica de conquista do poder
mas não de organização do desenvolvimento. O planejamento centralista infirmou
a criatividade tecnológica (exceto, no caso soviético, no tocante à tecnologia
militar espacial), enquanto que o emudecimento dos sinais do mercado entorpece
a agricultura, os serviços e as indústrias de bens de consumo. A falta do elo
dos incentivos na corrente produtiva acabou prejudicando a distribuição e
tornando as economias socialistas menos desiguais, porém globalmente mais
pobres que as economias de mercado. O êxito do desempenho econômico tem estado
na razão inversa e não na razão direta da ortodoxia socialista. Uma visão
retrospectiva justifica a dúvida se a Revolução Socialista de 1917, pago o
pesado preço de sua brutalidade política, conseguiu no fundo acelerar o
desenvolvimento russo, comparativamente ao processo evolutivo das democracias
ocidentais. Talvez Houphouet-Boigny, o astuto Presidente da Cota do Marfim,
tenha feito mais que uma piada ao dizer que há um “r” sobrando na palavra
“revolução”.....
*Defensor apaixonado do
liberalismo. Economista, diplomata e político também se revelou um intelectual
brilhante. De sua intensa produção, resultaram inúmeros artigos e obras como o
livro A Lanterna na Popa, uma
autobiografia que logo se transformou em best-seller. Foi ministro do
Planejamento, senador por Mato Grosso, deputado federal e embaixador em
Washington e Londres. Sua carreira começou em 1939, quando prestou concurso
para o Itamaraty. Logo foi servir na embaixada brasileira em Washington, e,
cinco anos depois, participou da Conferência de Bretton Woods, responsável por
desenhar o sistema monetário internacional do pós-guerra.
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