“A
proposta das esquerdas brasileiras é comer a semente destinada ao
plantio”. (Oscar Lorenzo-Fernandez)*Roberto de Oliveira Campos
Por Ricardo Bergamini
Poucas
coisas têm sido mais profetizadas que o fim do capitalismo.
Parafraseando Mark Twain, pode-se dizer que as notícias de sua morte
são algo exageradas. Se duas lições a história nos ensina é,
primeiro, que a história não é dialética: “o socialismo não
sucedeu ao capitalismo”, para usar a expressão de Daniel Bell. E,
segundo, que a crise do socialismo parece hoje mais séria que a do
capitalismo. As coisas não se passaram exatamente como previa Marx.
Não houve a “pauperização” do proletariado. O capitalismo
monopolista sobreviveu à perda dos impérios. O socialismo não
surgiu do proletariado industrial amadurecido, senão que resultou do
comando de intelectuais revolucionários sobre massas primitivas. O
Estado não feneceu nos países que supostamente eliminaram o
conflito de classes.
De
um simples dispositivo de espoliação econômico-feudal, burguesa ou
industrial, o capitalismo evoluiu para se transformar num sistema
trinitário, com três vetores distintos em tensão criadora
pontilhada de avanços e retrocessos: o aspecto econômico, o
político e o cultural. O socialismo marxista ao invés, partindo de
uma ampla análise social, tornou-se um sistema monístico, em que
esses diferentes valores se unificam e confundem, em rigidez
pragmática. O socialismo, que nascera como ciência, virou
religião. O
capitalismo, que parecia, simples obsessão econômica, absorveu
valores de credo liberal, e se revelou politicamente mais flexível e
culturalmente mais diversificado.
Nenhum
dos dois sistemas hoje existe, obviamente, em sua forma pura, o que
torna os termos “capitalismo” e “socialismo” simplificações
duvidosas. Mas não se deve exagerar a convergência dos dois
sistemas.
As
“economias de mercado” são perfeitamente diferenciáveis das
“economias de comando”, ainda que as primeiras tenham absorvido
graus intensos de intervenção governamentais e as segundas comecem
a admitir os sinais do mercado no tocante a preços incentivos. Isso
é dramaticamente perceptível nas zonas de confrontação: Alemanha
Ocidental versus Alemanha Oriental, Coréia do Norte versus Coréia
do Sul, China Continental versus Taiwan, e assim por diante.
Se
quisermos, para simplificar as coisas, especificar as diferenças que
permanecem fundamentais, citemos duas. A primeira é que as
“Economias de mercado” tendem a ser politicamente pluralistas,
enquanto as “economias de comando” são basicamente monistas,
isto é, o Partido define os valores econômicos, políticos e
sociais. Uma segunda espécie de “marca de berços” é, como
disse Irving Kristol, que na postulação socialista, o importante é
a distribuição, antes que a produção. Com isso elide, ou pensa
elidir, o problema vital dos “incentivos” materiais. Pequenas
sociedades, como os kibbutzin de Israel e os mosteiros medievais,
podem assim funcionar. As grandes sociedades perdem eficiência sem
incentivos materiais e individuais. A
preocupação distributiva explica em parte o secreto fascínio que o
socialismo exerce sobre muitos cristãos, que assimilam distribuição
à caridade. A tal ponto que se esquecem da face inaceitável do
socialismo, isto é, seu antiespiritualismo de origem, implícito no
materialismo dialético.
À
busca de raízes éticas
Se
o capitalismo, ou melhor, as “economias de mercado”, têm
sobrevivido às “crises” profetizadas por Marx, assim como às
“contradições culturais” denunciadas por Daniel Bell, resta
saber a que necessidade básica correspondem. Para Hayek, a
explicação é simples. Reside em ser o único sistema compatível
com a liberdade do indivíduo. E a liberdade, definível como a
“ausência de constrangimento”, é mais fundamental que a
justiça, pois que esta depende de uma impraticável avaliação de
mérito. Uma sociedade livre pode ser justa, enquanto uma sociedade
não-livre nunca é justa, pois nega ao individuo oportunidade de
auto-realização.
Poucos
têm hoje a coragem libertária de Hayek e preferem assim outras
justificativas para o “ethos capitalista”, em face da crueldade
do mercado. Irving Kristol, por exemplo, lembra, sem endossá-las,
três explicações tradicionais:
-
A ética protestante, ou seja, o conceito weberiano de que o sucesso
econômico se justifica em função do exercício de virtudes
pessoais, como a inteligência, a sobriedade, a ambição honesta.
(Esqueçamos, por inoportuno discuti-las, as teorias antiweberianas
de que o capitalismo comercial nasceu nas cidades italianas, e a
organização do trabalho horário nos mosteiros medievais,
antecedendo assim a ética calvinista).
-
A ética darwiniana, segundo a qual o sucesso representa uma solução
natural, pela sobrevivência dos mais capazes.
-
A ética tecnocrática, segundo a qual o mercado organiza sua própria
meritocracia e premia a liderança em função da performance.
Nenhuma
dessas explicações chega a constituir uma teologia moralmente
tranqüilizadora, comprável ao fervor dogmático do socialismo.
O
fato é que, seja pelas crueldades do mercado – onde fatores
acidentais, como a herança, ou imperfeições políticas, como a
discriminação racial, criam desigualdades chocantes – seja pelo
contágio de pregação socialista (que melhora a igualdade mas
retarda a eliminação da pobreza), o capitalismo moderno desenvolveu
sua própria Angst, uma espécie de complexo de culpa. Exemplos desse
complexo de culpa são a reação contra o “comunismo” e a
“depredação ecológica“.
Isso
revela no sistema capitalista ao mesmo tempo debilidade ideológica
(que o torna menos exportável), e a flexibilidade pragmática (que o
torna mais durável). Donde poder-se falar hoje nas “economias de
mercado corrigido”, nas quais o mercado sofre intervenções que
refletem as contínuas tensões resultantes que se poderia chamar o
“triplica compromisso” entre riqueza individual, equidade social
e liberdade política. O mercado privado seria o criador de riqueza,
o governo, o promotor de equidade, e o sistema democrático, o
preservador da liberdade. A sucessão de fases intervencionistas e
libertárias na Europa Ocidental, assim como nos Estados Unidos,
caracterizadas pela alternância de partidos sociais-democráticos ou
conservadores, conforme predominam preocupações produtivistas ou
distributivistas, denotam as cambiantes predominâncias dos elementos
constitutivos do tríplice compromisso.
A
superposição de crises
Tendo
sobrevivido a inúmeras crises no passado, inclusive o vendaval da
Grande Depressão dos anos trinta, há poucas dívidas de que as
economias de mercado sobrevivam à presente crise de estagflação.
Registrem-se entretanto três complicadores. Primeiro, a adaptação
ao choque do petróleo requer ajustamentos de estrutura, e não
apenas remédios de conjuntura. Segundo, há uma grande perplexidade
doutrinária, pelo desaparecimento de antigas certezas sobre métodos
de gerenciamento global da economia. Terceiro, as sociedades
ocidentais, habituadas a um quarto de século de avanço continuo na
renda real, tem percepção mais aguda daquilo que se chama o “índice
de desconforto”, medida compósita do grau de inflação e do
índice de desemprego, aos quais se agrega o novo conceito de
deterioração ambiental. Da mesma maneira que os países em
desenvolvimento foram sacudidos pela “revolução das expectativas
crescentes”, os países industrializados foram atacados pela
presunção de “direitos crescentes” (the “Revolution of rising
entitlements”).
Limitaremos
nossa análise à desordem conceitual que se instalou nas teorias
econômicas, onde se podem citar quatro controvérsias intensificadas
pela teimosa persistência da estagflação:
-
a controvérsia entre gradualismo e tratamento de
choque;
-
o debate entre monetarismo e keynesianismo;
-
as novas teorias de “administração da oferta” (supply side
economics); e
-
a ressurreição dos ciclos de longo prazo (a teoria da “onda
larga” de Kondratieff, economista russo da década dos vinte).
A
controvérsia do gradualismo versus tratamento de choque tornou-se
cada vez menos interessante. O bom senso indica que o tratamento de
choque só não transpõe o limite de tolerância política se a
inflação é moderada, e se as expectativas não se tornaram
cronicamente viciadas, de modo a permitir que o trauma recessivo seja
curto. Caso contrário, as sociedades estão condenadas ao
gradualismo. O que é importante, como nota o Professor William
Fellner, é que seja um “gradualismo a velocidade perceptível”,
isto é, suficiente para modificar as expectativas.
A
reativação da controvérsia entre monetarismo e keynesianismo foi
conseqüência direta da estagflação. Por longo tempo no pós-guerra
o Keynesianismo ganhou foros de ortodoxia, principalmente no mundo
anglo-saxão (no continente europeu a escola austríaca manteve a
tradição monetarista). A renitência da inflação e a incapacidade
do keynesianismo de debelá-la provocaram uma ressurreição
neomonetarista, com experimentos monetaristas ensaiados na Inglaterra
e Estados Unidos, encorajados pela evidência de que os países mais
bem-sucedidos na luta contra a inflação – Suíça, Alemanha e
Japão - foram os que menos se haviam exposto à contaminação
keynesiana.
A
nouvelle vague nos Estados Unidos é a administração da oferta –
“supply side economics”. A ênfase sobre a oferta é válida se
interpretada como complemento e não como substitutivo da
“administração da procura”. A “supply side economics” é,
entretanto mais que simples metodologia. Aspira a ser uma filosofia
de reabilitação do ethos capitalista, pela liberação das energias
do produtor, restauração de incentivos à poupança e
produtividade, estímulo à concorrência, redução de interferência
governamental, seja assistencial, seja regulatória. (Os exageros da
mania ecológica – a “economia” – nos Estados Unidos
encareceram e retardaram investimentos).
A
intratabilidade da atual fase de estagflação ressuscitou velhas
teorias sobre ciclos econômicos, que a contínua prosperidade do
pós-guerra parecia haver arquivado. Segundo o Professor Walter
Rostow, a explosão dos preços de trigo, petróleo e outras
matérias-primas em 1972/1973 prenuncia o advento de uma nova onda
larga da conjuntura, o quinto ciclo Kondratieff, marcado pela
relativa escassez de matérias-primas, especialmente energia. Como é
sabido, o economista russo Kondratieff (que segundo Soljenitzn teria
morrido num gulag) escrevendo na década de 20, identificara no exame
de sérias estatísticas, relativas à Grão-Bretanha, França e
Estados Unidos, a existência de ciclos ascendentes e descendentes de
produção e preços num espaço de 40 e 50 anos entre 1790 e 1920.
Na
extrapolação de Rostow, a Grande Depressão dos anos trinta
marcaria a fase descendente do terceiro Kondratieff, enquanto o
período recente (1972/79) marcaria o começo do ramo ascendente do
quinto Kondrafieff. Nessa visão, as crises não seriam o canto de
cisne do capitalismo e sim episódios de uma evidência evolutiva. É
interessante anotar os pontos de convergência entre uma
interpretação à la Kondratieff e a presente busca de uma teoria de
“administração de oferta”. Pois se estamos no limiar de um novo
Ciclo Kondratieff, caracterizado pela relativa escassez de produção
primária e energia, a política adequada não deveria ser
macroeconômica, nem no sentido monetarista de simples administração
de procura nem no sentido keynesiano de estímulo global a
investimentos, senão que direcionada seletivamente para o aumento da
oferta setorial de matérias-primas e energias alternativas. A
reorientação seletiva de investimentos, no sentido do rompimento de
gargalos, representaria uma conciliação entre a necessidade
antiinflacionária de conter a demanda global e a necessidade
anti-recessiva de estimular a oferta.
Mas
se o capitalismo hodierno superpõe às perplexidades da estagflação
uma desorientação conceitual, o panorama não é nada melhor no
campo socialista. O marxismo deixou de ser ciência para
transformar-se em dogma. Sua eficiência ficou limitada à quebra de
moldes feudais em sociedades primitivas. É uma técnica de conquista
do poder mas não de organização do desenvolvimento. O planejamento
centralista infirmou a criatividade tecnológica (exceto, no caso
soviético, no tocante à tecnologia militar espacial), enquanto que
o emudecimento dos sinais do mercado entorpece a agricultura, os
serviços e as indústrias de bens de consumo. A falta do elo dos
incentivos na corrente produtiva acabou prejudicando a distribuição
e tornando as economias socialistas menos desiguais, porém
globalmente mais pobres que as economias de mercado. O êxito do
desempenho econômico tem estado na razão inversa e não na razão
direta da ortodoxia socialista. Uma visão retrospectiva justifica a
dúvida se a Revolução Socialista de 1917, pago o pesado preço de
sua brutalidade política, conseguiu no fundo acelerar o
desenvolvimento russo, comparativamente ao processo evolutivo das
democracias ocidentais. Talvez Houphouet-Boigny, o astuto Presidente
da Cota do Marfim, tenha feito mais que uma piada ao dizer que há um
“r” sobrando na palavra “revolução”.....
*Defensor
apaixonado do liberalismo. Economista, diplomata e político também
se revelou um intelectual brilhante. De sua intensa produção,
resultaram inúmeros artigos e obras como o livro A Lanterna na Popa,
uma autobiografia que logo se transformou em best-seller. Foi
ministro do Planejamento, senador por Mato Grosso, deputado federal e
embaixador em Washington e Londres. Sua carreira começou em 1939,
quando prestou concurso para o Itamaraty. Logo foi servir na
embaixada brasileira em Washington, e, cinco anos depois, participou
da Conferência de Bretton Woods, responsável por desenhar o sistema
monetário internacional do pós-guerra.
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