quinta-feira, 26 de abril de 2012

STF, o “Guardião” da Constituição?



As decisões com efeitos gerais do STF uniformizam o direito, mas quem há de afirmar peremptoriamente que exercem uma autêntica jurisprudência? Será que, antes de “guardar” a Constituição e/ou o bom direito, não está a arruinar ambos?
Por Klauber Cristofen Pires

Permitam-me contar uma anedota, que segundo me disseram, realmente aconteceu: havia um fazendeiro que tinha um avião, que ele próprio constantemente pilotava para alcançar cada uma de suas propriedades. E assim foi o tempo passando, de tal forma que a cada pequeno problema na aeronave, ou ele se acostumava com o defeito, ou remendava com um “gatilho” qualquer: porque o manche estava puxando para a esquerda, então ele se acostumou a manter o rumo mantendo-o proporcionalmente torcido para a direita; dado que a boia do tanque de combustível estava engatada, partiu a estimar suas disponibilidades pelo odômetro; o altímetro, por sua vez, também estava defasado em coisa de cinquenta metros, de modo que seguiu a lógica de pilotar levando em conta a diferença apontada. Tudo ia bem, até que um dia vendeu a aeronave para comprar uma nova, tendo sobrado seu antigo aparelho para servir, já na primeira decolagem, como urna funerária para o seu adquirente...
Moral da historinha: Erros novos não corrigem erros velhos!
Vitoriosa a tese da constitucionalidade das cotas raciais por conta de flagrante e já corriqueira discricionariedade por parte dos excelentíssimos ministros do Supremo Tribunal Federal, exsurge a perigosa proposta de Emenda Constitucional de iniciativa do deputado federal Nazareno Fonteles, do PT/PI, segundo a qual ao Congresso será prevista a prerrogativa de alterar decisões do Poder Judiciário se considerar que elas exorbitaram o “poder regulamentar ou os limites da delegação legislativa”.
Pergunto-me se não resultaria ociosa a medida, no tanto em que onze advogados escolhidos muito mais em função de suas condições naturais pessoais ou de suas opções ideológicas do que pela letra morta da notoriedade do saber jurídico, e ainda menos, da reputação ilibada, já se ponham diligentemente a cumprir a agenda estipulada por quem os designou.
Ociosa? Não mesmo! Neste mato tem coelho! Temo sinceramente que tal medida se converta numa ferramenta anuladora do Poder Judiciário, em face de um Congresso hegemonicamente formado e ideologicamente tentado ao revolucionário populismo. Vejo-o até, em última instância, como o instrumento de um segundo ulterior veto presidencial, ou seja, a solução final para a concentração de todos os poderes na figura do presidente da República!
Como já expus em outros escritos, firma-se progressivamente em mim a convicção de que a fórmula dos tribunais constitucionais, bem como das decisões erga omnes (para todos) e as chamadas súmulas vinculantes (decisões uniformizadas firmadas para todas as novas lides que surgirem), não fazem bem ao sistema jurídico, mas antes, são a principal causa de queda deste, e por consequência, de qualquer regime de direito e de liberdades civis.
Na milenar obra A República, de Platão, o filósofo Sócrates debate com Polemarco nos seguintes termosi:
Sócrates: “- Logo, quem é capaz de se defender de uma doença, é também o mais capaz de a transmitir despercebidamente?”
Polemarco: - É o que me parece.”
Sócrates: - Mas, na verdade, será um bom guardião do exército aquele mesmo que roubar os planos do inimigo e o lograr nas suas operações?”
Polemarco: “- Exatamente.”
Sócrates: “ - Logo, se uma pessoa for um hábil guardião de uma coisa, é também um hábil ladrão da mesma.”


Polemarco: “Assim parece”.


Por sua vez, o historiador Garet Garrett também registra este fenômeno curioso nos EUA (minha tradução)ii:
Tome o ano de 1898. A República tinha então 110 anos; e este foi propriamente o seu último aniversário.
...
Em uma geração:
...
Ele (o americano) havia aprendido que a Constituição era o que a Suprema Corte dissesse o que ela era...(grifos meus)


Ainda com relação ao direito constitucional norte-americano, convém destacar o entendimento firmado pela Suprema Corte daquele país desde o início dos anos 40 no sentido de que a liberdade de expressão (“freedom of speech”) não alcança a propaganda comercialiii, muito embora a Constituição não estabeleça absolutamente nenhuma exceção; aliás, muito ao contrário, a Primeira Emendaiv estatui que “o Congresso não deverá fazer nenhuma lei com respeito ao estabelecimento de um religião, ou proibindo o seu livre exercício; ou limitando a liberdade de expressão, ou da imprensa;...).
É bem possível que a Suprema Corte tenha agido de tal forma porque ainda se encontrava traumatizada pela ameaça de substituição de todos os juízes, lançada pelo então presidente Franklin D. Roosevelt, notório por suas ambições intervencionistas, no caso que ficou marcado na história como “a mudança em tempo para salvar os nove” (“The switch in time that saved nine”), como meio para que conseguisse a aprovação da lei do salário-mínimo.
Retornando ao caso brasileiro, temos tido a oportunidade de em um rápido interstício temporal testemunhar um temerário rol de arbitrariedades protagonizadas pelo STF, que a cada dia se farão mais difíceis de serem encaixadas nas teorias dos juristas, no vão afã de justificá-las perante os alunos das faculdades de direito: foram o caso das algemas, da fidelidade partidária, do número de vereadores, do casamento gay, dos fetos anencéfalos, das cotas raciais, e ainda adiciono, da substituição tributária progressiva e dos índios da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Falta mesmo pouco para abrir o jogo e dizer: vale tudo! Aliás, no meio popular já prevalece um dito, “-ninguém sabe o que sai da cabeça de um juiz” como se fosse coisa normal, e não um horrível escândalo. Advogados experientes costumam valer-se da estratégia de driblar os sorteios dos juízes de modo a conseguirem aqueles mais simpáticos às suas causas.
Hoje em dia, virtualmente nenhum juiz tem a sobre-humana capacidade de conhecer e harmonizar a plêiade de leis e atos administrativos vigentes, tantas vezes colidentes entre si, de modo que mais facilmente se encoraja a aderir à escola do “direito achado na rua”. Como tem nos ensinado o Prof. Thomas Woods Jr, de um bom juiz de um novo regime socialista não se espera mesmo um amplo conhecimento jurídico, mas sim uma boa consciência revolucionária, de forma que absolutamente qualquer fato pode servir como pretexto para absolver este cidadão e simultaneamente incriminar aquele.
Afinal, o que é a Jurisprudência? Como o próprio termo sugere claramente, é a “prudência do direito”.
Prudência”, porque historicamente a jurisprudência chega até nós como uma herança do extinto Direito Natural, na forma de uma tendência não terminativa verificada a partir das consultas aos diversos julgamentos anteriores sobre casos iguais ou parecidos. Comparando as diversas decisões do passado e conhecendo seus efeitos verificados concretamente no mundo real, o juiz se municia de uma melhor compreensão sobre os fatos e sobre as consequências que podem advir de lavra e assim se habilita a julgar com mais sabedoria. Com o tempo, vai-se formando um processo contínuo de depuração e aperfeiçoamento do direito. Como é apropriado dizer: o bom direito não se decreta, mas se descobre!
No mundo atual, a palavra “jurisprudência” tem sido confundida com “uniformidade”. Não se negue, portanto, que as decisões dos tribunais superiores e do Supremo Tribunal Federal confiram uniformidade ao sistema jurídico, mas quem há de afirmar peremptoriamente que necessariamente trazem consigo a virtude da verdadeira jurisprudência?
Como consequência, dois resultados são possíveis: um que, por ser conforme a Constituição e as leis, bem como também por advir do melhor senso de justiça, prevaleça e reforce o sistema jurídico, e outro que, ao contrário, há de miná-lo, de desfigurá-lo, de deslegitimá-lo e de anulá-lo.
Notem como as decisões gerais (“erga omnes”) e as súmulas vinculantes, especialmente quando infelizes, não resolvem os problemas dos administrados, mas simplesmente lhes negam os direitos naturais e constitucionais de petição e de acesso ao julgamento justo e imparcial. Que a súmula vinculante tenha sido apresentada como a solução para uma demanda crescente junto ao Poder Judiciário, isto somente oculta o vero fato de que o maior causador de litígios é o próprio estado, que com sua ânsia intervencionista tem conquistado a incrível marca de 95% dos processos em andamento na justiçav, segundo notícia divulgada pela Agência Brasilvi.
Ponhamos nossos olhos sobre o segundo caso, para refletirmos como podem tais infelizes decisões, quando ocorrerem, arruinar o direito de forma praticamente irreformável, e então concluiremos que a mera existência dos tribunais superiores e do Supremo tribunal Federal, bem como das decisões erga omnnes e das súmulas vinculantes, podem ser desastrosas, mesmo que somente por mera potencialidade.
As decisões desastrosas tem o efeito parecido com a da água livre nos porões de carga de um navio: tendem a mantê-lo adernado, ao invés de fazê-lo retornar ao prumo, e o acúmulo há de acarretar, finalmente, a virada completa da embarcação.
Ao que me parece, uma futura evolução das democracias tenderá a compreender o erro que foi o estabelecimento de tribunais dotados da prerrogativa de estabelecer decisões gerais e permanentes. Parece-me mais viável que permaneçam no futuro tão somente os juízes e tribunais que julguem casos concretos, de modo que uma autêntica jurisprudência emerja, mesmo que à custa de ocasionais decisões infelizes, desagravadas por gerarem consequências para um número limitado e reduzido de destinatários.
i Platão. A República. Martin Claret, 2008 2ª ed. São Paulo-SP p.19
ii GARRETT, Garet, The American Story. The Ludwig von Mises Institute. Auburn, Alabama, 2009 p. 171-172:
ivCongress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances.

vihttp://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-03-31/setor-publico-federal-e-bancos-estao-em-76-das-acoes-que-tramitam-na-justica

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