As decisões com efeitos gerais do STF
uniformizam o direito, mas quem há de afirmar peremptoriamente que
exercem uma autêntica jurisprudência? Será que, antes de “guardar”
a Constituição e/ou o bom direito, não está a arruinar ambos?
Por Klauber Cristofen Pires
Permitam-me contar uma anedota, que
segundo me disseram, realmente aconteceu: havia um fazendeiro que
tinha um avião, que ele próprio constantemente pilotava para
alcançar cada uma de suas propriedades. E assim foi o tempo
passando, de tal forma que a cada pequeno problema na aeronave, ou
ele se acostumava com o defeito, ou remendava com um “gatilho”
qualquer: porque o manche estava puxando para a esquerda, então ele
se acostumou a manter o rumo mantendo-o proporcionalmente torcido
para a direita; dado que a boia do tanque de combustível estava
engatada, partiu a estimar suas disponibilidades pelo odômetro; o
altímetro, por sua vez, também estava defasado em coisa de
cinquenta metros, de modo que seguiu a lógica de pilotar levando em
conta a diferença apontada. Tudo ia bem, até que um dia vendeu a
aeronave para comprar uma nova, tendo sobrado seu antigo aparelho
para servir, já na primeira decolagem, como urna funerária para o
seu adquirente...
Moral da historinha: Erros novos não
corrigem erros velhos!
Vitoriosa a tese da
constitucionalidade das cotas raciais por conta de flagrante e já
corriqueira discricionariedade por parte dos excelentíssimos
ministros do Supremo Tribunal Federal, exsurge a perigosa proposta de
Emenda Constitucional de iniciativa do deputado federal Nazareno
Fonteles, do PT/PI, segundo a qual ao Congresso será prevista a
prerrogativa de
alterar decisões do Poder Judiciário se considerar que elas
exorbitaram o “poder regulamentar ou os limites da delegação
legislativa”.
Pergunto-me se não
resultaria ociosa a medida, no tanto em que onze advogados
escolhidos muito mais em função de suas condições naturais
pessoais ou de suas opções ideológicas do que pela letra morta da
notoriedade do saber jurídico, e ainda menos, da reputação
ilibada, já se ponham diligentemente a cumprir a agenda estipulada
por quem os designou.
Ociosa? Não mesmo! Neste
mato tem coelho! Temo sinceramente que tal medida se converta numa
ferramenta anuladora do Poder Judiciário, em face de um Congresso
hegemonicamente formado e ideologicamente tentado ao revolucionário
populismo. Vejo-o até, em última instância, como o instrumento de
um segundo ulterior veto presidencial, ou seja, a solução final
para a concentração de todos os poderes na figura do presidente da
República!
Como já expus em outros
escritos, firma-se progressivamente em mim a convicção de que a
fórmula dos tribunais constitucionais, bem como das decisões erga
omnes (para todos) e as chamadas súmulas vinculantes (decisões
uniformizadas firmadas para todas as novas lides que surgirem), não
fazem bem ao sistema jurídico, mas antes, são a principal causa de
queda deste, e por consequência, de qualquer regime de direito e de
liberdades civis.
Na milenar obra A
República, de Platão, o filósofo Sócrates debate com
Polemarco nos seguintes termosi:
Sócrates:
“-
Logo,
quem é capaz de se defender de uma doença, é também o mais capaz
de a transmitir despercebidamente?”
Polemarco:
“- É o que me parece.”
Sócrates:
“ - Mas, na verdade, será um bom guardião do exército
aquele mesmo que roubar os planos do inimigo e o lograr nas suas
operações?”
Polemarco:
“- Exatamente.”
Sócrates:
“ - Logo, se uma pessoa for um hábil guardião de uma coisa, é
também um hábil ladrão da mesma.”
Polemarco:
“Assim parece”.
Por sua vez, o historiador Garet Garrett
também registra este fenômeno curioso nos EUA (minha
tradução)ii:
“Tome
o ano de 1898. A República tinha então 110 anos; e este foi
propriamente o seu último aniversário.
...
Em uma geração:
...
Ele (o americano) havia aprendido
que a Constituição era o que a Suprema Corte dissesse o que ela
era...(grifos meus)
Ainda com relação ao direito
constitucional norte-americano, convém destacar o entendimento
firmado pela Suprema Corte daquele país desde o início dos anos 40
no sentido de que a liberdade de expressão (“freedom of
speech”) não alcança a propaganda comercialiii,
muito embora a Constituição não estabeleça absolutamente nenhuma
exceção; aliás, muito ao contrário, a Primeira Emendaiv
estatui que “o Congresso não deverá fazer nenhuma lei com
respeito ao estabelecimento de um religião, ou proibindo o seu livre
exercício; ou limitando a liberdade de expressão, ou da
imprensa;...).
É bem possível que a Suprema Corte
tenha agido de tal forma porque ainda se encontrava traumatizada pela
ameaça de substituição de todos os juízes, lançada pelo então
presidente Franklin D. Roosevelt, notório por suas ambições
intervencionistas, no caso que ficou marcado na história como “a
mudança em tempo para salvar os nove” (“The switch in time
that saved nine”), como meio para que conseguisse a aprovação
da lei do salário-mínimo.
Retornando ao caso brasileiro, temos tido
a oportunidade de em um rápido interstício temporal testemunhar um
temerário rol de arbitrariedades protagonizadas pelo STF, que a cada
dia se farão mais difíceis de serem encaixadas nas teorias dos
juristas, no vão afã de justificá-las perante os alunos das
faculdades de direito: foram o caso das algemas, da fidelidade
partidária, do número de vereadores, do casamento gay, dos fetos
anencéfalos, das cotas raciais, e ainda adiciono, da substituição
tributária progressiva e dos índios da Reserva Raposa Serra do Sol,
em Roraima.
Falta mesmo pouco para abrir o jogo e
dizer: vale tudo! Aliás, no meio popular já prevalece um dito,
“-ninguém sabe o que sai da cabeça de um juiz” como se fosse
coisa normal, e não um horrível escândalo. Advogados experientes
costumam valer-se da estratégia de driblar os sorteios dos juízes
de modo a conseguirem aqueles mais simpáticos às suas causas.
Hoje em dia, virtualmente nenhum juiz tem
a sobre-humana capacidade de conhecer e harmonizar a plêiade de leis
e atos administrativos vigentes, tantas vezes colidentes entre si, de
modo que mais facilmente se encoraja a aderir à escola do “direito
achado na rua”. Como tem nos ensinado o Prof. Thomas Woods Jr, de
um bom juiz de um novo regime socialista não se espera mesmo um
amplo conhecimento jurídico, mas sim uma boa consciência
revolucionária, de forma que absolutamente qualquer fato pode servir
como pretexto para absolver este cidadão e simultaneamente
incriminar aquele.
Afinal, o que é a Jurisprudência? Como
o próprio termo sugere claramente, é a “prudência do direito”.
“Prudência”, porque historicamente a
jurisprudência chega até nós como uma herança do extinto Direito
Natural, na forma de uma tendência não terminativa verificada a
partir das consultas aos diversos julgamentos anteriores sobre casos
iguais ou parecidos. Comparando as diversas decisões do passado e
conhecendo seus efeitos verificados concretamente no mundo real, o
juiz se municia de uma melhor compreensão sobre os fatos e sobre as
consequências que podem advir de lavra e assim se habilita a julgar
com mais sabedoria. Com o tempo, vai-se formando um processo contínuo
de depuração e aperfeiçoamento do direito. Como é apropriado
dizer: o bom direito não se decreta, mas se descobre!
No mundo atual, a palavra
“jurisprudência” tem sido confundida com “uniformidade”. Não
se negue, portanto, que as decisões dos tribunais superiores e do
Supremo Tribunal Federal confiram uniformidade ao sistema jurídico,
mas quem há de afirmar peremptoriamente que necessariamente trazem
consigo a virtude da verdadeira jurisprudência?
Como consequência, dois resultados são
possíveis: um que, por ser conforme a Constituição e as leis, bem
como também por advir do melhor senso de justiça, prevaleça e
reforce o sistema jurídico, e outro que, ao contrário, há de
miná-lo, de desfigurá-lo, de deslegitimá-lo e de anulá-lo.
Notem
como as decisões gerais (“erga
omnes”)
e as súmulas vinculantes, especialmente quando infelizes, não
resolvem os problemas dos administrados, mas simplesmente lhes negam
os direitos naturais e constitucionais de petição e de acesso ao
julgamento justo e imparcial. Que a súmula vinculante tenha sido
apresentada como a solução para uma demanda crescente junto ao
Poder Judiciário, isto somente oculta o vero fato de que o maior
causador de litígios é o próprio estado, que com sua ânsia
intervencionista tem conquistado a
incrível marca de 95% dos processos em
andamento na justiçav,
segundo notícia divulgada pela Agência
Brasilvi.
Ponhamos nossos olhos sobre o segundo
caso, para refletirmos como podem tais infelizes decisões, quando
ocorrerem, arruinar o direito de forma praticamente irreformável, e
então concluiremos que a mera existência dos tribunais superiores e
do Supremo tribunal Federal, bem como das decisões erga omnnes
e das súmulas vinculantes, podem ser desastrosas, mesmo que somente
por mera potencialidade.
As decisões
desastrosas tem o efeito parecido com a da água livre nos porões de
carga de um navio: tendem a mantê-lo adernado, ao invés de fazê-lo
retornar ao prumo, e o acúmulo há de acarretar, finalmente, a
virada completa da embarcação.
Ao que me parece, uma futura evolução
das democracias tenderá a compreender o erro que foi o
estabelecimento de tribunais dotados da prerrogativa de estabelecer
decisões gerais e permanentes. Parece-me mais viável que permaneçam
no futuro tão somente os juízes e tribunais que julguem casos
concretos, de modo que uma autêntica jurisprudência emerja, mesmo
que à custa de ocasionais decisões infelizes, desagravadas por
gerarem consequências para um número limitado e reduzido de
destinatários.
i Platão. A
República.
Martin Claret, 2008 2ª ed. São Paulo-SP p.19
ii GARRETT,
Garet, The
American Story.
The
Ludwig von Mises Institute. Auburn, Alabama, 2009 p. 171-172:
ivCongress
shall make no law respecting an establishment of religion, or
prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of
speech, or of the press; or the right of the people peaceably to
assemble, and to petition the Government for a redress of
grievances.
vihttp://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-03-31/setor-publico-federal-e-bancos-estao-em-76-das-acoes-que-tramitam-na-justica
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