Quando o Supremo Tribunal Federal, contra, quero crer, os fundamentos da Constituição, decidiu que a aplicação de cotas raciais nas universidades federais e no ProUni não era inconstitucional, estava, aqui se advertiu, abrindo as portas para o racialismo.
Por Reinaldo Azevedo
Restava evidente que os militantes da causa tinham naquele julgamento apenas a sua primeira trincheira. Vencida aquela batalha, eles avançariam um tanto mais, tentando conquistar novos terrenos. E é o que vai acontecer. Note-se à margem que o mesmo vale para o aborto de anencéfalos. Não era, sustentei e sustento ainda hoje, a causa em si que estava sendo julgada. Era necessário relativizar o direito à vida. Vencida essa etapa, viriam os desafios seguintes. Não por acaso, os grupos abortistas, como aquele troço absurdo chamado “Católicas Pelo Direito de Decidir”, saudaram a decisão do tribunal como uma vitória da “causa do aborto”. Estavam pouco se lixando para as grávidas de fetos anencéfalos. Eram apenas um pretexto. Da mesma sorte, a declaração de constitucionalidade das cotas constituía uma etapa a ser conquistada. Um pacote de medidas que o governo pretende anunciar ainda este ano, conforme se lê em um dos posts abaixo, pretende sacramentar o racismo no Brasil.
As propostas estão sendo elaboradas por um órgão que tem o curioso nome de Secretaria de Promoção da Igualdade Racial. As ações devem se dividir em três grupos: “educação”, “trabalho” e “comunicação e cultura”. O Supremo terá a chance de ver o monstrengo que criou. O tribunal decidiu apenas que as cotas não são inconstitucionais, e tal decisão não obriga as instituições a aplicá-las. A autonomia universitária lhes garante o direito de escolha. Pelo visto, não mais. A “discriminação positiva” passaria a ser obrigatória. Já seria absurdo o bastante, mas cumpre não subestimar a militância racialista. Também os cursos de pós-graduação — mestrado e doutorado — teriam de aplicar o programa.
Vamos ver. O argumento em que se sustentam os racialistas para aplicar cotas na graduação é a discriminação a que estariam submetidos os negros em razão de condicionantes histórias. Elas impedem, dizem, os negros de disputar com os brancos em condições de igualdade. Já desmontei quão falacioso é o argumento muitas vezes. Hoje, só para encarecer o novo absurdo em curso, farei de conta que isso é verdade — vale dizer: vou fingir que a questão é mesmo racial e não social. Muito bem! Um negro que já tenha concluído o ensino universitário, então, com cotas ou sem ela, terá vencido aquelas condicionantes e chegado ao fim do curso. Seguir ou não na carreira universitária passaria a depender apenas de sua formação intelectual, de sua inclinação para a vida acadêmica, de seu apreço pelo estudo, sei lá…
Não! Errado! A discriminação o perseguiria até mesmo nos momentos em que se selecionam os estudantes para os cursos de pós-graduação — para, atenção!, mestrado e doutorado. Se já é um absurdo que o desempenho intelectual não seja o único critério a definir quem ingressa ou não numa universidade, é um acinte que se estabeleçam cotas para qualquer categoria naquela que é, santo Deus!, uma esfera da investigação científica. Ainda que não seja fatal, quase sempre o que se candidata a doutor já é mestre, já foi longe da vida acadêmica. Haver qualquer outro critério para o doutorado que não seja a qualidade da especulação científica do doutorando é um absoluto despropósito. A ser assim, não pode haver dimensão da vida nacional que não obedeça mais ao perfil racial do Brasil.
Fico pensando no STF: hoje, há lá um negro, Joaquim Barbosa. Dado o percentual de pessoas com essa cor de pele no Brasil — pouco mais de 7% —, só caberia mesmo a esse grupo uma vaga. Em setembro, Dilma Rousseff terá de nomear um novo ministro ou ministra. Se houver um negro com plenas condições, ela deveria evitar esse nome para que eles não fiquem “super-representados” no STF? Imaginem uma campanha defendendo que os americanos espelhem no poder a composição racial do país. Barack Obama jamais teria sido eleito. Os negros nos EUA são apenas 13% da população — sim, incluindo os mestiços (chamados de “pardos” pelo nosso IBGE) que a militância racial chama “negros”.
Digam-me cá: não havendo, na esfera do doutorado, um número suficiente de hipóteses de investigação científica de pesquisadores negros, o que se deve fazer? Já sei: abrir mão de uma proposta superior assinada por um branco ou amarelo em benefício de uma inferior, assinada por um negro. Que coisa! Essa gente bacana e iluminada pretenderá levar o racialismo à própria investigação científica. É absurdo!
No trabalhoOs concursos públicos também obedeceriam ao critério de cotas, creio que nas mesmas condições do ingresso na graduação. Os negros teriam pontos a mais, independentemente de sua história e de sua origem. Também nessa área, um negro rico — e eles existem — levaria vantagem sobre um branco pobre, como acontece hoje no ensino universitário. Como os racialistas estão vivendo a fase do delírio de poder, querem estender essa clivagem para os cargos comissionados — não raro, cargos de confiança. Assim, aqueles que detêm o poder de nomeação devem, também, compartimentar essa confiança, de modo a exercê-la segundo critérios de cor de pele.
Na culturaNa cultura, o que se sabe até agora é que recursos públicos seriam, por exemplo, especialmente direcionados para filmes que tratem da temática racial. Interessante! Vocês querem ver como é fácil perceber o diabo no detalhe? Vocês querem ver como é fácil descobrir o demônio do autoritarismo numa proposta que parece ser tão democrática? Vocês querem ver como é fácil apontar a tentação da tutela estatal sobre a produção cultural, sob o pretexto de combate ao racismo?
Ora, não é preciso ser um gênio para intuir que um roteiro, por mais bem elaborado e pertinente que fosse, não receberia a prebenda caso negasse a perspectiva racialista, certo? Um trabalho que tentasse demonstrar que o Brasil caminha para uma democracia racial (pouco imposta, leitor, neste momento, se você concorda com isso ou não), já que tem 44% de mestiços (”pardos”), certamente seria recusado em benefício de um outro que abraçasse a tese oficial, a tese do estado, ainda que tecnicamente inferior. O dinheiro público, nesse caso, não estaria patrocinando o talento, mas financiando um determinado conteúdo. Estamos falando de dirigismo cultural.
Nessa toada, há de que perguntar por que não se aplicarão as cotas segundo o gênero, a identidade sexual, as religiões, o porte físico, as preferências alimentares etc. Cotas teriam de ser aplicadas nos times de futebol, nas novelas de televisão, na música popular, no Carnaval — tudo, parece-me, segundo os dados do IBGE. Das Câmaras de Vereadores ao Congresso Nacional, passando pelas Assembleias Legislativas e chegando ao Supremo e aos ministérios, teria de haver uma distribuição de cargos segundo a cor da pele. Se alguns competentes ou com mais votos tiverem de ser preteridos em benefício de menos competentes e com menos votos, tudo bem! O importante é… fazer justiça! Queremos ser um país de brasileiros ou de tribos em permanente confronto?
Pode parecer espantoso que tenhamos chegado a isso — na verdade, como coisa em si, é mesmo. Mas não é nada surpreendente. Era o ovo da serpente que estava naquele julgamento das cotas no Supremo. E outras peçonhas destinadas a dividir a sociedade brasileira segundo a cor da pele virão na esteira daquela decisão.
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